Selvageria
Hirsch mostra que Brasil é conservador até debaixo d’água
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emUbiratan Brasil
Primeiro documento histórico a descrever o Brasil, a carta redigida por Pero Vaz de Caminha em 1500 e dirigida ao Rei de Portugal, D. Manuel, revela o deslumbramento do europeu com a beleza natural dos trópicos, mas, em um determinado momento, o escrivão alerta: “O melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”.
“Trata-se da primeira evidência da necessidade do colonizador em ter controle sobre a nova terra, a partir do batizado dos índios”, comenta o encenador Felipe Hirsch, que estreia seu novo trabalho, o instigante “Selvageria”, nesta sexta-feira, 3, no teatro do Sesc Vila Mariana.
Baseadas em livros e documentos históricos, as 11 cenas (apenas a última é inspirada em uma obra de ficção, “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto) mostram como, no Brasil atual, ainda estão arraigadas ideias antigas, datadas de séculos atrás. “O discurso conservador que marca essa nova onda reacionária em vigor já estava plantado naqueles textos históricos, o que explica, por exemplo, os motivos pelos quais perpetuamos vários tipos de escravidão: social, indígena, negra”, observa Hirsch. “Ainda temos área social e área de serviço nos edifícios e ainda mantemos empregadas domésticas que, mesmo com nossa boa vontade, continuam ganhando mal.”
Um dos principais encenadores do País, Felipe Hirsch revela-se também um dos mais atentos, desde que, em 2012, decidiu romper com a confortável carreira que vinha construindo (“Eu me cansei do fastio provocado por um teatro de repetição”) e entrar de cabeça em processos criativos efervescentes, especialmente baseados em textos literários. Assim, no ano seguinte, iniciou uma trilogia com “Puzzle”, espetáculo que mostrou como a obra de escritores brasileiros contemporâneos apresentava um reflexo fiel da realidade. Continuou com o díptico “A Tragédia Latino-Americana” e “A Comédia Latino-Americana”, ambos de 2016, que se revelou uma vigorosa investigação literária a partir dos escritos de autores do continente e seus reflexos sobre as questões sociais do território. E a trilogia se fecha agora com “Selvageria”. “Se Puzzle e o díptico se inspiraram em ficções, Selvageria seria uma espécie de documentário ao tratar das raízes do conservadorismo no Brasil a partir de documentos históricos”, comenta Hirsch, com um tom irônico.
Ele começou a se debruçar sobre a documentação há dois anos, quando devorou os dois volumes da Bibliographia Brasiliana (Edusp), trabalho organizado por Rubens Borba de Moraes e que contém o registro tanto de obras publicadas no exterior de 1504 a 1900 como as de autores brasileiros impressas antes de 1822. O complemento veio nas pesquisas no precioso acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.
“A intenção foi utilizar apenas documentos produzidos por estrangeiros, entre os séculos 16 e 19 – a única exceção é o livro de Lima Barreto”, explica o encenador. “A fala é dos europeus e dos selvagens civilizados contados por europeus brancos. São essas pessoas que falam. E esses documentos são aterrorizantes.”
Há casos realmente impressionantes. Como o texto “Voyage Autour du Monde” (Viagem ao Redor do Mundo), escrito pelo francês Jacques Arago. Artista da expedição científica chefiada por Claude-Louis de Freycinet e que chegou ao Rio em 1817, Arago escreveu o relato da viagem em um estilo espirituoso e divertido “Mas seu grande mérito é o de oferecer a mais forte e mais fiel descrição de um mercado de escravos negreiros ao retratar em detalhes o Cais do Valongo, um dos maiores portos escravagistas do mundo e cuja redescoberta foi talvez a melhor herança das obras feitas na cidade para a Olimpíada”, conta Hirsch. “É aterrador, trata-se do nosso holocausto.”
Outro documento precioso e raro foi encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo: as cartas da escrava africana Teodora da Cunha, escritas pelo brasileiro e também escravo Claro Antônio dos Santos. Ele era carpinteiro e, para completar a minguada renda, aproveitava-se da sua habilidade com a escrita para escrever inúmeras cartas em nome de Teodora e outros escravos analfabetos. “Escrito em um português castiço, traz um relato comovente e também esclarecedor da rotina deles.”
O espetáculo, que conta com um intervalo, termina com os momentos derradeiros de “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”. “Esse trecho ainda me assombra”, confessa Hirsch. “Traz o discurso, na prisão, do homem que tentou entender a sua Pátria e que, ali, descobre que tudo aquilo não fez sentido.”