Distopia
2047, ano do voto vitimizado e do vírus da estupidez
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emHá um país do futuro no qual as mulheres são tratadas com descaso e menosprezadas quanto ao seu intelecto e capacidade de trabalho, transgêneros e gays são assassinados diariamente em função de sua orientação sexual, a polícia promove a despersonalização de pessoas não enquadradas na ética do “cidadão de bem” e a luta contra o racismo estrutural é tratada como vitimismo de quem não consegue ter méritos próprios.
Neste mesmo país, as florestas tropicais são queimadas e derrubadas a partir de uma diretriz do governo, e uma epidemia não somente é tratada com descaso, mas, sua negação é a própria materialização de uma ideologia onde a morte é idolatrada e incentivada por um líder, Lair Montanaro, comandante de uma aglomeração disforme e construída sobre o falso, eficaz como uma palafita a sustentar um edifício de alvenaria, mas baseada em um sentimento sólido: o ódio.
Este país é Lisarb, o ano é 2047, e nele existe uma revolução: a revolução dos dementes.
Há uma epidemia, a doença Rened-47, a luta pela vacina, boicotada pelos negacionistas e a eleição presidencial próxima. Os candidatos: Lair Montanaro, Servius Mórus, Cairo Góes e Lucas, que acaba de ser liberto e inocentado pela Suprema Corte, e volta ao cenário político para tentar resgatar o país de um desvio de rota, junto com os democratas, e livrá-lo da tragédia e de um ponto de inflexão desenhado no horizonte próximo com tintas sangrentas, de um mergulho no abismo, ponteio num voo a deixar, de uma vez por todas, escrito em pedra, o pior de si mesmo, de mãos dadas com a loucura.
Numa entrevista dada recentemente sobre o lançamento deste seu segundo romance – 2047: A Revolução dos Dementes –, o escritor Max Telesca, advogado com militância nos tribunais superiores, revela que ao terminar o primeiro volume da trilogia, 2038, lançado em 2016, estava completamente tomado pelo sentimento, transmudado em sofrimento, de que a democracia e a república haviam sido capturadas de uma maneira irreversível pelo grande capital, pela violência e pela corrupção, algo que ele chama, na primeira frase de 2047, de “poder real”. Seu intento original, portanto, para o segundo volume, seria uma denúncia deste sequestro das grandes conquistas civilizatórias iluministas, a dialogar com a crise da representatividade que assola o Ocidente.
Contudo, segundo o autor, com o desenrolar dos anos surreais de Bolsonaro, ele percebeu que um livro crítico ao sistema institucional seria um equívoco histórico, dado que o fascismo se apodera das contradições do sistema democrático para miná-lo e depois derrubá-lo.
Daí que, segundo as palavras do autor, ele estruturou o romance com um discurso de fundo intransigente em defesa da democracia, de denúncia ao horror do fascismo e à loucura negacionista, jogando luz sobre a treva de algo reinante numa boa parcela da população: uma demência coletiva que não morre nunca, apenas fica adormecida durante um tempo, latente, cujas tintas, pacientemente, retornam, como voltaram agora, no recrudescimento de uma ultradireita raivosa e desabrida, desavergonhada de sua indigência intelectual, de seus preconceitos, de seu desprezo pela alteridade e, especialmente, de seus objetivos mortíferos.
Essa estruturação pode ser percebida ao longo do romance, que dialoga com grandes clássicos da literatura universal, como a grande distopia fundante 1984, de George Orwel, ou mesmo na sua fábula A revolução dos bichos, presente no subtítulo, a misturar nominalmente os dois clássicos, ou ainda quando bebe na maior obra literária a tratar de uma epidemia, depois da qual Camus recebe o Prêmio Nobel: A peste.
O texto de Telesca, ainda nas partes centrais e finais, envereda de modo corajoso e competente no realismo fantástico latino-americano, e as personagens, tomadas pelo vírus RENED-47, se convertem em animais e começam a ter a pele transformada em couro, as mãos e os pés, aos poucos, viram cascos, a coluna se dobra e a voz torna-se um grunhido, a relembrar também “a metamorfose” de Kafka e a insurgência dos mortos em Incidente em Antares, do seu conterrâneo Érico Veríssimo.
O romance conta a história de Alex Tedesco, jornalista influente, assessor de Lucas e escritor de seus discursos, que se exila na Europa após os protestos de 2038 e a derrocada do PEV – Partido Ético e Verdadeiro, de cuja agremiação era colaborador, e em cuja ideologia depositou todas suas esperanças. Em 2047, é instado por amigos a voltar da Europa e superar as decepções políticas, a morte de sua primeira mulher, Lisa, e finalizar a relação com Benigna Alphonsus, sua atual companheira, uma antagonista responsável por realçar no contraditório e ambivalente narrador, sua sombra, seus piores defeitos, suas mortes em vida.
Golpeado pela necessidade de enfrentamento da verificação de uma realidade conjugal abusiva e tóxica, a partir da qual vislumbrou claramente a perda de tempo, de sua juventude, do afastamento de seus princípios, de sua “risca original”, Alex volta a Lisarb, reorienta sua vida e engaja-se na luta contra o fascismo de Montanaro.
Coordenando a campanha de Cairo Góes à presidência da República, buscando a reaproximação deste com Lucas, o texto se desenvolve em primeira pessoa, por meio do fio condutor de uma eleição presidencial decisiva, de uma epidemia, com o desarranjo de uma sociedade que havia, senão de forma definitiva, chegado à justiça social, superado a miséria, conquistado o mínimo possível de dignidade, mergulhada em contradições, mas, como o narrador realça, superado o buraco da indignidade, da fome.
Em busca de si mesmo, tentando engendrar o melhor para Lisarb, Alex conta “que a democracia é uma casa velha com goteiras, problemas na fiação e, especialmente, cheia de infiltrações. No banco, está hipotecada, com muitas dívidas, mas é a nossa casa”. Na mesma toada, Max Telesca, o autor, na voz de Alex, entende que a “democracia e a república, apesar de todas suas contradições, cooptações, erros, como buscas artísticas infindáveis a definir o destino traçado para o nosso desamparo, são sistemas semi ficcionais que estão a demonstrar a nossa mais bem-acabada construção, acolhedora e aconchegante ruína”.
Dentro desse universo criado, há espaço para o lirismo e a beleza. Alex Tedesco consegue reencontrar Suzana, sua grande paixão, e esta a levará para um momento definidor, onde seus sentimentos são testados com o encontro de uma filha desconhecida, cientista, uma jovem a personificar os anseios de esperança.
2047 é um romance distópico onde grande parte dos diálogos se dá por hologramas, existem sistemas que controlam a depressão e a ansiedade por meio de medicações infiltradas em mecanismos de dispensação gradual controlada por allphones. Os nanobots destroem coágulos no cérebro e nas artérias coronárias, o VAL – Veículo Aéreo Leve – transporta passageiros num passeio de 5 (cinco) minutos entre o centro de Litorânia e o aeroporto, mas a tragédia humana permanece intacta e o desafio de reconquistar o mínimo de dignidade e justiça social é o enredo.
O texto de Max Telesca merece ser lido e considerado neste momento histórico. Sua leitura, no contexto de uma sociedade dividida entre a loucura e a necessidade de retorno à sanidade, pode ser vista como um momento de lucidez e reflexão. Um romance que certamente vai irritar e incomodar muita gente, mas também divertir e alegrar.
*Luiz Fernando Emediato é jornalista, escritor, editor. Texto publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique Brasil.