Nonagésimo dia do ano no calendário gregoriano (91º em ano bissexto), 31 de março marca os 28 anos de nossa libertação do jugo tirânico dos militares de então. Para a maioria esmagadora dos brasileiros, particularmente os de bem e os da paz, é uma data a ser comemorada ad eternum. É o que faremos, principalmente depois do aprendizado com o polímata francês Gustave Le Bon, para quem um ditador não passa de ficção. Diria mais: o poder ditatorial dissemina-se entre numerosos subditadores anônimos e irresponsáveis, cuja tirania e corrupção não tardam a tornar-se insuportáveis. Qualquer semelhança com um passado recentíssimo é mera coincidência. Para os ufanistas, no entanto, o prazer mórbido e quase sexual é comemorar os 59 anos do golpe civil-militar que conduziu o país para sua mais longa e brutal ditadura.
A dita foi dura inclusive para os que hoje defendem sua volta. São os que, direta ou indiretamente, compactuam com a tortura e com os torturadores, com a vigilância severa, com a repressão à imprensa e com a falta de liberdade do povo. Esses têm horror à pátria livre. Sem direitos constitucionais, perseguidos, censurados e criminalizados somente por se colocarem contra o regime político e social da época, os adoradores da democracia certamente se lembrarão sempre do 31 de março como o Dia do Silêncio. É curioso, mas, repito, o regime de exceção foi implantado efetivamente em 1º de abril, dia consagrado à mentira. Até hoje, portanto, o dia do levante é motivo de disputa. Em verdade, as tropas começaram a se movimentar na madrugada de 31 de março, mas a vigência do regime só começou no limiar de abril.
Isto quer dizer que não há problema tão grande que não caiba no dia seguinte. Resumindo a ópera, 31 de março já doeu na alma, mas hoje é só 1º de abril. Independentemente de quando se comemora, vale registrar que o objetivo do golpe foi o maior engodo da política nacional. A ideia era “recolocar o país no rumo”, evitando o avanço das organizações populares do governo de João Goulart, acusado de comunista. Interessante é que a tentativa de novamente golpear o Brasil teve o mesmo mote. Quebrar e vandalizar as sedes dos poderes da República também objetivava combater os “comunistas” que decidiram por um fim a Jair Messias, um arremedo de ditador, cuja covardia é tão óbvia que, após perder as impunidades, calou-se como um menino fujão. Aliás, disso ele entende como ninguém. Quem não se lembra de frases do tipo “O erro da ditadura foi torturar e não matar”, “Sou a favor sim de uma ditadura, de um regime de exceção” e “Se eu chegar à Presidência, o coronel Ustra vai ser herói nacional”.
Para quem finge não tê-lo conhecido, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra foi chefe dos centros de tortura e assassinato de pessoas que se opunham à Redentora. O Doi-Codi do II Exército era seu palco principal. Querem mais? Desnecessário para o povo insabido e, principalmente, para os desinsabidos. Enquanto deputado, Bolsonaro fazia questão de que todos conhecessem e “comprassem” Ustra como mito nacional, o mesmo que ele, em vão, tentou ser. Foi o período em que, como disse Millôr Fernandes, o embrião do bolsonarismo já tinha certeza de que acreditar que não acreditamos em nada é crer na crença do descrer. Realmente “como são admiráveis as pessoas que não conhecemos bem”.
Na pior das hipóteses, o povo republicano, ordeiro e pacífico precisa do dia 31 de março para opor aos herdeiros das ditaduras o valor da democracia. Temos a obrigação de mostrar aos talibãs que, intestinamente livres, saem às ruas em carreatas, motociatas e carrociatas pedindo a ditadura que o inverso jamais foi permitido. Ou seja, durante a ditadura não havia negociação possível para uma passeata em defesa da democracia. Era cana, cacete, tortura e sepultura clandestina. Não necessariamente nessa ordem. Quem viveu no pós-64 conhece bem a diferença entre democracia e ditadura: numa evolui quem pensa, noutra quem obedece.
No sistema democrático, se pode votar antes de obedecer às ordens superiores. Seguindo a máxima do pensador brasileiro Saint-Clair Mello, tudo bem que democracia também tem riscos: ou se elege o pior ou o menos ruim. Na ditadura, somos dispensados desse incômodo. De qualquer modo, prefiro ter voz. Mesmo depois de 59 anos, optei por lembrar sempre do 31 de março como um trabalho constante de avivamento da memória. Tem dado resultado, pois até no sonho repito diariamente o slogan do projeto Memórias Reveladas: “Para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça”. Ditadura nunca mais. Nem mesmo aquela disfarçada de democracia.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978