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Machado e Mário

Dois Prometeus melancólicos, escreve Silviano

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Antonio Gonçalves Filho

Muito mais que um exercício de imaginação, colocar-se no lugar do outro é um pouco sentir a vertigem do semelhante – e, no caso de Machado de Assis, essa “vertigem” se traduz nas “crises nervosas” que se tornaram frequentes após a morte de sua mulher Carolina, com quem foi casado durante 35 anos. Recém-viúvo e sem filhos, Machado de Assis encontra na figura de Mário de Alencar mais que um interlocutor. Encontra um filho, cuja candidatura à Academia Brasileira de Letras patrocina.

Mário de Alencar veio a ocupar, em 1905, a vaga aberta pela morte de José do Patrocínio. Os jornais, especialmente O País, desaprovaram a escolha. O Malho publicou uma caricatura do escritor vestido como um escolar e uma cartilha sob o braço esquerdo. Machado, reflete Silviano Santiago, talvez tenha incentivado o filho espiritual a se candidatar à vaga da Academia para que “Mário se redimisse da culpa que sofria por ser autor medíocre e não estar à altura do pai, José de Alencar”

Mário, embora visitasse regularmente o mentor – quase todos os dias, conforme deixou registrado -, invejava Machado, ainda segundo o romance de Santiago. A doença que mantinha pai e filho espiritual unidos não oferecia, segundo o autor, a possibilidade da “simetria encontrada na bela amizade” entre o escritor mais velho e o mais moço. Machado era introvertido, Mário, extrovertido. Eram tipos antagônicos unidos na doença – eles se tornam semelhantes por causa dela, defende Santiago, definindo-os como “dois Prometeus melancólicos”.

A análise dessa relação dramática e da compreensão do significado real da doença de ambos passa, no epílogo do romance, pela leitura dos Evangelhos. Santiago retrata Machado a consultar a versão de Marcos da história do epilético endemoninhado. Tenta imaginar o choque que o bruxo de Cosme Velho teve com o estilo brutal do evangelista. Machado nem ousaria descrever da mesma forma a cena de um espírito se apoderando de um pobre garoto epilético, espumando e rangendo os dentes diante de Jesus. Mas Santiago, que já se colocou no lugar de Graciliano Ramos no diário ficcional Em Liberdade, é capaz de se apresentar como alter ego de Machado e escrever um romance em que dá prioridade à interpretação.

Por vezes ensaístico, Machado é um romance transgressor. O autor de Memorial de Aires é apresentado como um naturalista que se aproveita dos clássicos para antecipar a linguagem dos surrealistas, em busca da “beleza convulsiva” numa cidade que se moderniza e empurra o “bruxo de Cosme Velho” para o abismo, ‘um self made man’ vindo do morro do Livramento que superou a pobreza, mas não os preconceitos de uma capital que copiava Paris.

MACHADO
Autor: Silviano Santiago
Editora: Companhia das Letras (496 págs., R$ 69,90)

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