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Biografia desautorizada

Dez anos depois o ‘rei’ fica nu, em todos os detalhes

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Julio Maria

O pior pesadelo de Paulo Cesar de Araújo começou na manhã de 17 de janeiro de 2007. Há exatos dez anos e um dia, Roberto Carlos entrava na Justiça com uma queixa crime e um pedido de busca e apreensão contra a biografia Roberto Carlos em Detalhes, de sua autoria.

Milhares de cópias já estavam nas lojas quando, cinco dias depois, uma determinação ordenou a retirada dos exemplares e estipulou uma multa de R$ 50 mil ao lojista que mantivesse a vida de Roberto exposta na vitrine. Dez anos e um dia. Nesse tempo, o tiro disparado por Roberto perfurou a alma de Araújo, abateu o mercado editorial, tirou lascas de um grupo de artistas decididos a apoiar o cantor em sua cruzada pelas biografias não autorizadas e ricocheteou no teto. Agora, dirige-se ao próprio atirador.

Uma nova biografia de Roberto será lançada até o segundo semestre de 2017. Escrita pelo mesmo autor proibido, Paulo Cesar de Araújo, que já havia revisitado a história em 2014 com o autobiográfico O Réu e o Rei, a publicação centra agora na obra para explicar o mito. O mesmo tom respeitoso e a apuração de fôlego de Araújo não devem poupar Roberto de episódios desconfortáveis, como a traumática perda de parte da perna direita em um acidente na infância, nem ceder à sanha do cantor pelos tribunais. Eis o ponto. Dez anos, um dia e uma decisão do Supremo Tribunal Federal depois, o mundo não é mais o mesmo.

“Os processos são do jogo e nenhuma editora luta para publicar o que quer. Mas o biografado que decidir processar um biógrafo vai ter de pensar mais. Afinal, vale a pena comprar a briga?”, diz Carlos Andreazza, editor executivo da Record, responsável pelo lançamento da nova biografia.

Paulo Cesar diz que escreve sem as amarras do medo. “Os casos estarão todos lá, até porque Roberto nunca disse que algo do livro fosse mentira. Seu cavalo de batalha não foi esse”. E o que teria mudado na vida de um biógrafo nesses dez anos? “Quando pedia uma entrevista para o livro, eu vivia ouvindo a frase ‘mas você tem autorização para escrever?’. Havia uma naturalização desta ideia. O cenário hoje é diferente.”

A editora de Araújo deve fazer uma operação para inundar as lojas com a nova biografia. A tiragem inicial, de ambiciosas 50 mil cópias (um livro com bom potencial de vendas sai, em geral, com dez mil), será usada em pilhas armadas em vitrines e em locais privilegiados das lojas. “As pessoas vão saber do dia do lançamento, mas vamos guardar várias informações, como o título e a capa, para que elas só conheçam o produto nas lojas”, diz Andreazza.

Marco Antonio Campos, advogado da tropa de choque de Roberto sobretudo nos possíveis casos caluniosos, de injúria, difamação ou de uso indevido de sua imagem, diz que estará atento no dia do lançamento do livro. “Eu não tenho nenhuma expectativa nem alguma pré orientação. Assim que sair o livro, vamos examinar se ele comete algum crime, algum delito que o outro já cometia. Ainda não tem como fazer um juízo antecipado.”

É muito provável que o próprio Roberto não leia sua nova biografia. Muitos acreditam que ele não tenha lido nem a primeira, que mandou retirar das livrarias. O traço controlador da própria imagem, no entanto, não vem de agora. Uma matéria da jornalista Sonia Abrão para uma edição da Revista Contigo de 1980 relata a censura pessoal de Roberto a várias partes do programa Quem Tem Medo da Verdade, da TV Record. Para permitir a reexibição da edição gravada dez anos antes, Roberto fez suas exigências. Sentou-se na ilha de edição da emissora com expressão de delegado, e empunhou a tesoura com assustadora destreza.

“Logo de cara, ele exigiu que fosse retirada sua opinião sobre os hippies. Em seguida, cortou o que falou sobre seu casamento com Nice e a parte em que os jurados atacaram seu maior rival naquele ano de 1970, Paulo Sérgio”, descreve Sonia. No momento em que reviu um entrevistador perguntar sobre o acidente com sua perna, Roberto, descreve a reportagem, deu um pulo da cadeira. “Corta, bicho! Corta isso já!”. E mandou mudar também a parte em que falava de seu envolvimento sentimental com Wanderléa. “Esse papo não é conveniente”. Antes de concluir sua “edição”, Roberto mandou retirar as falas do jornalista Arley Pereira, o único que o condenava ao final do programa.

A nova biografia deve ser a prova de fogo ao julgamento do caso no STF, em junho de 2015, quando a votação se tornou uma peça histórica contrapondo a liberdade de expressão e de informação aos também legítimos pedidos de direito à privacidade. Até aqui, nenhuma publicação assinada por um biógrafo trouxe conteúdo explosivo a ponto de colocar em teste tal determinação. A única exceção pode ser considerada disparo de fogo amigo. A autobiografia de Rita Lee (leia matéria abaixo) provocou mais estragos do que qualquer biógrafo em 2016. E – resultado ou não de um amadurecimento diante de biografados e adjacentes – nenhum processo foi movido. Ou, ao menos, ainda.

Liberdade – A era pós-STF promete páginas quentes. A mesma Record tem na programação uma biografia da apresentadora Hebe Camargo, escrita pelo jornalista Artur Xexéo, e do político e empresário Teotônio Vilela, de Carlos Marchi. A Companhia das Letras tem na agenda, para sair entre 2017 e 2018, as bios do empresário Roberto Marinho (de Leonêncio Nossa, jornalista do Estado), do apresentador Silvio Santos (do também jornalista Ricardo Valladares), do político Carlos Lacerda (de Mario Magalhães) e do personagem histórico Tiradentes (de Lucas Figueiredo).

A Globo Livros segue à frente do filão religioso que praticamente criou com o blockbuster Padre Marcelo. O jornalista Rodrigo Alvarez, que já vendeu 80 mil cópias com a história de Padre Fábio, deve repetir a dose. Assim como a roqueira Rita Lee, que parece ter gostado da brincadeira de escritora e que fará, agora, um livro ficcional.

O meio parece respirar mais aliviado. “Muitos editores deveriam estar aguardando esse momento para lançar livros”, diz Mauro Palermo, diretor da Globo Livros. “2016 fechou melhor do que esperávamos”, fala Otávio Marques da Costa, da Companhia das Letras. Roberto Feith, editor que acompanhou as audiências no STF, diz o seguinte: “Retomamos o caminho da sanidade e da liberdade responsável de pesquisa e expressão”.

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