Gênio do piano
Grosvenor com pouco público. Mas, na Cracolândia…
Publicado
emJoão Marcos Coelho
Muito aguardada, a estreia do jovem pianista inglês Benjamin Grosvenor, de 24 anos, no Brasil aconteceu na quarta-feira, 24, diante de uma Sala São Paulo com bom público, mas longe de estar lotada. O motivo foi extramusical. A sala está no coração da Cracolândia, objeto de mais uma desastrada operação conjunta da Prefeitura e do governo do Estado.
Os que foram ao concerto assistiram a uma noite regada ao melhor pianismo romântico, na linhagem dos grandes virtuoses do século 19. Franzino, rosto de menino, Grosvenor transforma-se em um leão domando o imponente Steinway de concerto. E, como os grandes do passado, não tem medo de incluir no cardápio variado obras tão populares que, por isso mesmo, acabaram afastadas das salas de concerto nos últimos tempos – caso da Sonata ao Luar, de Beethoven.
Em Beethoven, aliás, ele mostrou a régua que determina sua interpretação: técnica superlativa e sensibilidade à flor da pele, em doses exatas, justas. Corda bamba onde o equilíbrio é muitas vezes buscado, raras vezes atingido, entre uma excessiva sentimentalidade e o virtuosismo apenas circense.
Nem uma coisa, nem outra. O Adagio sostenuto tocado por mil entre mil pianistas amadores soou com a intensidade necessária, mas sem açúcar em demasia; e o Presto agitato mergulhou num furacão. Em ambos os casos, soluções perfeitas de Grosvenor. Duas especiarias do pianista me encantaram particularmente: sua fina sutileza na construção das frases na delicadíssima Arabesque de Schumann. E o modo como “realizou” o objetivo de Mozart com sua sonata “concertante” K. 333, sobretudo na deliciosa cadência do Allegretto grazioso final, como se estivéssemos diante de um “concerto sem orquestra”.
O repertório da segunda parte repetiu o itinerário da primeira. A segunda sonata do admirável e infelizmente pouco tocado compositor russo Aleksander Scriabin reproduz o desenho da Sonata ao Luar: um andante mais lírico e um tempestuoso finale presto. Claro que misturando pitadas de Chopin e de Liszt, cada qual no que têm de melhor.
A opção pela música espanhola e espanholizante no bloco final nos encaminhou para um clímax em que o virtuosismo, necessário tanto em Granados quanto em Liszt, acabou vitorioso – como convém a um recital, para fazer o público vibrar com as verdadeiras mágicas da Rapsódia Espanhola, alucinado tour de force composto pelo húngaro para deliciar suas plateias espanholas em 1844.
Entre os dois, fico com Granados. Como Albéniz, ele era mestre em outro tipo de mágica: a de transformar o piano numa guitarra flamenca sem cair na caricatura. Grosvenor tocou Los Requiebros e Fandango de Candil, das Goyescas. Na primeira, teceu diante de nós o perfume do improviso obsessivo do flamenco; e na segunda recriou a frenética dança do amor, à luz de velas. Fechou um círculo virtuoso que pairou em todo o recital, pois Granados tinha Chopin na conta de ídolo máximo, gostava de Liszt e conseguiu, em seus melhores momentos, alcançar a delicadeza de Schumann.