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A musa

Anelis Assumpção encerra jejum com a fartura em disco

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Autor/Imagem:
 Pedro Antunes

Benedito, de 6 anos, já estava de banho tomado, dentes escovados, debaixo das cobertas. Dormia, enfim. Então, só então, Anelis Assumpção caminhava em direção à cozinha. Sentava-se à mesa, acendia um cigarro e punha-se a escrever naquele cômodo espaçoso, com uma mesa de seis lugares, decorado com uma parede pintada de rosa-choque. Escrevia, escrevia, escrevia, noite adentro, com fruteira ao lado, sobre a mesa. Começava por volta das 23h, sem horário para acabar.

Artista herdeira de um dos sobrenomes mais importantes e impactantes da música brasileira, Anelis é a arte em processos, de degustar as fases, início, meio e fim dos seus discos. E dos períodos em álbuns, também. Sua carreira nunca foi de pressa. Sozinha tinha dois álbuns, Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa (2011) e Anelis Assumpção e os Amigos Imaginários (2014). Antes disso, em 2010, celebrou a obra do pai Itamar com o lançamento da Caixa Preta. Cantou no disco da irmã Serena, lançado em 2016. Nesse meio tempo, realizou shows em homenagem a Paulo Vanzolini, Clara Nunes e a Peter Tosh. Ufa.

Tudo isso para dizer que os quatro anos que separam o disco Amigos Imaginários e Taurina, lançado nesta sexta-feira, 16, não são tão distantes assim. Taurina sai pelo selo Scubidu Music e foi realizado com o auxílio do edital Natura Musical e tem a apresentação de lançamento marcada para o dia 16 de março, no Teatro Paulo Autran do Sesc Pinheiros. É um dia importante, com significados, dores e sabores. Taurina terá um mês de existência, mas também é a data na qual, dois anos antes, Serena Assumpção, irmã e também artista, se foi, após lutar contra um câncer de mama. Há muito a conectar esses dois sentimentos tão difusos, contudo. Anelis é uma artista de etapas. E eles, sacanas e inconscientes, misturam tudo.

“E, para mim, os processos são longos”, explica Anelis Assumpção, em entrevista ao Estado. “Eles deveriam ser assim, mesmo. A gente vive num momento de efemeridade, de coisas rápidas.” São tempos de degustações rápidas, afinal, do ambiente de música por streaming, das playlists e das audições rasas. “É preciso tempo, também, para analisar uma obra, avaliá-la, percebê-la dentro do contexto histórico no qual ela se encontra. O disco ajuda a contar a história de um momento”, conclui.

E, degustar Taurina, leva tempo. Inclusive para a própria autora “Embora eu tivesse escrito um monte de coisa, comecei a ter uma interpretação diferente de alguns dos textos de quando eles surgiram. Na época, eu não entendia porque escrevia daquela forma. Eu, mesma, não conseguia entender quem eram esses personagens ditos no disco. Depois, só depois, percebi e achei que tive instinto, ou previa algo, que depois aquilo tudo faria sentido no meu coração.”

Taurina é, de fato, um álbum de sentidos. De gostos. Anelis tem as sensações, a culinária e os sabores como base para sua composição há tempos, mas no seu terceiro álbum, ela destrava a fechadura de vez, deixa as metáforas rechearem o disco de cores, cheiros e temperos.

Mas cuidado, pede Anelis, ao conectar o título do disco com o estereótipo daqueles nascidos sob a constelação de touro, costumeiramente vistos como comilões: é reducionista. “Não gostaria que as pessoas estacionassem na ideia de que o disco se chama Taurina por isso. Há tantos outros critérios. Gosto de astrologia, mas não sou astróloga”, diz Anelis. Taurina, o título, leva a reflexão para o animal, para a vaca, este animal que é doação por inteiro, do leite, da carne, do couro, do osso. E também é sagrado, para as culturas orientais. Por fim, é xingamento, é ofensa. É feminista, por fim, por ser um mergulho pela identidade feminina, pela transformação social e força das mulheres. É também um nado a braçadas pela profundeza de sentimentos de Anelis ao longo dos últimos quatro anos, quando passou a reunir as canções que comporiam o álbum e iniciava as conversas com Beto Villares, o produtor do disco – o parceiro Zé Nigro é coprodutor.

Há uma canção escrita em parceria com Serena Assumpção, a dolorida Chá de Jasmim, que versa um amor perdido e dolorido. De Itamar, vem Receita Rápida, uma canção quase inédita, lançada apenas por Alzira E, no disco dela de 1996, Peça-Me. “Alzira sempre foi uma inspiração para mim, por ser essa cantora e compositora”, conta Anelis. “E gosto de sempre estar próxima de meu pai.” Bonita também é Gosto Serena, desta vez só de Anelis, um tratado sobre a saudade – essa palavra sem gosto. “Só depois percebi que tinha relações profundas com a minha irmã e a doença dela, com o fato de ela ter ido embora e eu ter perdido alguém, mais uma vez. Escrevia no momento no qual não queria falar sobre isso”, explica.

A ausência, em Taurina, é fome, é jejum, é desgosto e falta de gosto. É cesta vazia, é xepa, é estrago e azedo, como em Caroço, canção escrita e cantada por Anelis e Russo Passapusso, da fundamental banda BaianaSystem. “Fiquei só pele e osso e o jejum é você / Jejum, oh jejum! / Nunca mais eu comi teu feijão / Oh Jejum! / Nunca mais segurei tua mão / Oh jejum! / Tá sem sal sem tempero sem gosto / O sorriso saiu do meu rosto / Até o brilho do sol ficou fosco / Me diz por quê / Tô sem comer.”

Até seis anos atrás, Anelis Assumpção escrevia no escritório da casa dela transformado em quarto do segundo filho, Benedito. Foi para a cozinha, onde a vida, para ela, pulsa. É lá que se ajuntam nas festinhas e de onde saem as mais mundanas refeições de café da manhã, almoço e jantar. Onde, de certo, riu e chorou. De lá sai Taurina, do lado da fruteira, do cheiro de fruta, do azedo e do doce, como a vida.

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