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Horda de venezuelanos

‘Boa Vista nunca mais será a mesma’, diz prefeita sobre crise

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Autor/Imagem:
Bartô Granja, Edição

Mensalmente, mais de 12 mil venezuelanos entram em Roraima após terem percorrido uma jornada de aproximadamente 200 quilômetros. Dependendo da cidade de que se parte, a viagem pode levar semanas. Quando não se consegue carona, o jeito é seguir a pé.

Além de carregar seus pertences, essas pessoas sofrem com a falta de comida, água, local para descansar. Crianças precisam ser levadas no colo, sob sol e chuva. Muitas chegam com os lábios ressecados, pela falta de hidratação, com os pés inchados e machucados.

É uma gente que chega deprimida e desolada por estar passando por uma situação de extrema vulnerabilidade. Mas, todos esses sentimentos são minimizados pela esperança de futuro no Brasil, já que na Venezuela não há perspectivas de melhora.

Segundo pesquisa da ONU, a maior parte dos venezuelanos (71%) que chega ao Brasil tem entre 25 e 49 anos, são em sua maioria homens (55%), solteiros (50%), possuem nível secundário de escolaridade (51%) e, no momento, estão desempregados (57%).

Dos 12 mil que chegam mensalmente, a grande maioria parte em vôos diários para Brasília, de onde seguem para todos os cantos do país. Mas, algo em torno de 2.700 venezuelanos permanecem em Boa Vista, a capital roraimense que, com pouco mais de 330 mil habitantes, é a segunda menos populosa do país.

O fluxo de venezuelanos mudou intensamente a rotina da cidade.

Fotos: Diego Dantas

Os oito abrigos construídos para atendê-los já estão lotados. Sem ter para onde ir, o excedente ocupa os espaços públicos, passando o dia pelas ruas, espalhados pelas calçadas, dormindo ao relento em praças municipais ou em tendas improvisadas ao lado de igrejas.

“A única forma que o Governo Brasileiro tem de ajudar é, realmente, na retirada do excedente de pessoas que estão na cidade, porque não damos mais conta de atender a todos. E se isso não for feito logo, já em janeiro ou fevereiro do ano que vem a cidade vai colapsar”, relata Teresa Surita, a prefeita da cidade, nesta entrevista.

Surita foi eleita pelo MDB na última eleição municipal com mais de 79% dos votos válidos e está em seu quinto mandato como prefeita. Em 2016, foi condenada em 1ª instância à perda do mandato em processo por improbidade administrativa, mas a ação foi arquivada.

Nascida em São Manuel em uma família de quatro irmãos, entre eles o radialista Emílio Surita (o apresentador do programa ‘Pânico’ na rádio Jovem Pan), Teresa foi prefeita de Boa Vista pela primeira vez em 1992, quando ainda era casada com Romero Jucá, atual presidente do MDB.

Nesta entrevista, ela discorre sobre diversos aspectos da crise migratória, como a xenofobia entre a população, o surto de sarampo (doença que estava erradicada no país), as dificuldades em garantir a vacinação de todos, as trapalhadas de Brasília para lidar com o que acontece em Boa Vista e, também, a questão envolvendo o fechamento da fronteira – um delicado tema levado ao STF pela governadora do Estado, a quem Surita se opõe frontalmente.

“O mundo está passando por uma transformação e os países não estão sabendo lidar com tudo isso. A integração vai se dando sempre com muita dificuldade, mas vejo o Brasil receber os migrantes e refugiados de uma maneira bastante humana”.

Porém, segundo ela, “o Brasil precisa aprender a dividir esse problema, que não é só nosso, de Roraima, mas de todos os estados, de toda a federação. O fato de estarmos muito longe do centro das atenções faz com que o grosso da população brasileira tenha somente no imaginário o que acontece por aqui”.

Qual é o ponto mais crítico dessa onda migratória?

O que nos causa o maior estrangulamento é que 12 mil novas pessoas entram a cada mês em Roraima. Dessa quantia, cerca de 2.700 pessoas permanecem em Boa Vista e 500 ficam totalmente desassistidas, sem ter onde morar e sem ter com o que trabalhar. São pessoas que vão parar nas ruas, que ocupam os espaços públicos em frente de abrigos esperando vagas.

Qual é o perfil das pessoas que deixam a Venezuela e entram no Brasil?

Os perfis são muito variados. Como a viagem é muito cruel de se fazer, então há poucos idosos e muitos jovens e adultos. A grande maioria é de pessoas com até 60 anos que já não tinham emprego na Venezuela, mas que são uma mão de obra economicamente ativa.

E famílias?

Embora a maior parte seja de homens e mulheres solteiros, existem casais que chegam com filhos pequenos e há, claro, mulheres que chegam grávidas. Agora, muitos chefes de família vêm na frente trazendo um filho pequeno, mas com o plano de trazer o restante da família para, então, seguir viagem rumo a outro lugar.

O que você sabe sobre essa viagem que os venezuelanos fazem para chegar até o Brasil?

Da Venezuela até Boa Vista são 200 quilômetros. Dependendo da cidade de que se parte, a viagem pode levar semanas. Quando não se consegue carona, o jeito é seguir a pé. Além de carregar seus pertences, essas pessoas sofrem com a falta de comida, água, local para descansar. Crianças precisam ser levadas no colo, sob sol e chuva. Muitos chegam com os lábios ressecados, pela falta de hidratação, com os pés inchados e machucados, doentes física e psicologicamente. É comum que eles acampem nas beiras das estradas para pernoitar. Aqueles que têm pertences de valor (tablets, notebooks, aparelhos celulares), conseguem, às vezes, trocar com os motoristas de táxi e lotação para serem levados até a capital. Outros têm a sorte de conseguir carona de alguma pessoa mais sensibilizada com a situação. Eles chegam deprimidos e desolados por estarem passando por uma situação extrema de vulnerabilidade. Agora, todos esses sentimentos são minimizados pela esperança de futuro no Brasil, já que na Venezuela não há perspectivas de melhora.

Quais histórias você escuta dessa gente? Alguma marcante, em particular?

São várias as histórias. Como as crianças são as mais vulneráveis nessa situação, nós acabamos dando muita atenção para a primeira infância por aqui. Outro dia, encontrei um garoto de uns 11 anos em um dos abrigos e ele me contou que fez a viagem com a mãe, que o irmão mais velho tinha ido para a Colômbia e que, agora, eles se planajevam para trazer o pai e os outros dois irmãos que ficaram na Venezuela.

Qual o status legal dos venezuelanos que chegam? Eles ganham visto de residência e direito a trabalho?

Atualmente, a Polícia Federal está emitindo o protocolo de refúgio, um atestado de residência válido por dois anos e o Cadastro de Pessoa Física (CPF). O agendamento pode demorar mais de um mês, mas tendo estes documentos em mãos, os venezuelanos podem emitir a Carteira de Trabalho ou começar a empreender por conta própria. No entanto, diante da restrição do mercado em Boa Vista, que já está saturado, aqueles que têm alguma condição financeira partem para outros estados do país em busca de novas oportunidades.

As pessoas que vêm da Venezuela falam sobre o Nicolás Maduro?

Segundo comentários espontâneos de alguns venezuelanos, o presidente Maduro é descrito como ladrão, corrupto, ditador, assassino, genocida. Alguém que rouba a riqueza da Venezuela e a envia para a China, Cuba, Rússia. Algumas dessas pessoas culpam Maduro pela pobreza extrema pela qual estão passando. Segundo eles, a Venezuela era um país rico e próspero e agora é apenas um lugar que beneficia aqueles que fazem parte do governo ou de alguma instituição que apoia a política do atual presidente.

Qual é a sua opinião sobre Maduro e sobre a situação atual da Venezuela, no geral?

Como disse o Papa Francisco há uns meses, Maduro é quem precisa se explicar. Ninguém sabe o que ele tem em mente. É como um ser sem alma, um ditador que precisa de intervenção internacional. Penso que a situação na Venezuela vai além de uma crise econômica, social e política: o povo venezuelano vive uma catástrofe moral e cívica. Eles precisam de muita solidariedade e de cada vez mais ajuda humanitária.

Como você projeta o futuro de Boa Vista?

Somos uma cidade que está aprendendo a conviver com esse novo cenário, mas pode ser que levemos uma década para acomodar tudo o que está acontecendo. Boa Vista nunca mais voltará a ser o que era. Isso é uma realidade. Em breve seremos uma cidade bilíngue. Na verdade, já somos, porque falar em português e em espanhol faz parte da rotina, agora.

Qual é a sua responsabilidade enquanto prefeita diante do cenário atual?

O município é quem menos tem responsabilidade oficial. De fato, a maior responsabilidade é do Brasil em relação aos acordos internacionais firmados com a ONU. Quem deve garantir as condições do país para o recebimento de migrantes e refugiados é o Governo Federal. Agora, como prefeita e como cidadã, eu quero ver todas as pessoas que vivem em Boa Vista com qualidade de vida, integradas e não segregadas.

Segregação, xenofobia, discriminação, preconceito. Como tudo isso se manifesta na relação entre os brasileiros e os venezuelanos?

Eu vejo que há mais solidariedade do que xenofobia. Óbvio que sempre tem os dois lados, então existem aqueles que não querem os venezuelanos por aqui. Mas, na minha avaliação, é muito mais o estranhamento de aprender a lidar com um povo e com uma cultura que não se conhece. Já me propuseram fazer filas separadas para brasileiros e venezuelanos nos postos de saúde, por exemplo. Eu disse que isso não existe aqui de jeito nenhum, porque a partir do momento em que há filas diferentes se está separando os indivíduos.

Mas também já houve casos extremos. Segundo uma pesquisa da Organização Internacional para as Migrações (OIM), cerca de 28% dos venezuelanos já sofreram algum tipo de violência em Boa Vista.

Quando 7,5% da população é composta por venezuelanos, é claro que vai existir xenofobia, mas ela não vem da maioria. Já tivemos casos. Por exemplo: uma mulher foi fazer um embarque no aeroporto, alguém achou que ela estava furando a fila e começaram a dizer que além da pegar o lugar deles em Boa Vista ela ainda queria passar na frente. Eu já ouvi falar, também, de alguém que vai fazer uma queixa de roubo na delegacia e quem atende pergunta se o autor do roubou foi um venezuelano. E teve o caso mais marcante da pessoa que ateou fogo em uma casa, ferindo um adulto e uma criança. Tudo isso é xenofobia.

É inevitável não relacionar essa situação das famílias venezuelanas que chegam a Boa Vista com o que está acontecendo nos Estados Unidos, onde crianças, pais e mães estão sendo separados por uma política do governo americano.

Isso é algo inadmissível que provoca dor, pela falta de sensibilidade de um governante tão poderoso como o Donald Trump, e que provoca revolta, pois é uma humilhação alimentada pelo comando de um presidente. Não dá para dizer que é humano.

Não há separação das famílias com os venezuelanos que chegam a Boa Vista?

Muito pelo contrário. Aqui, os que vão primeiro para os abrigos são as famílias, os pais, as mães e as crianças.

Ainda nesse tema: qual é a sua opinião sobre o fechamento da fronteira do Brasil com a Venezuela?

Não se pode fechar a fronteira para pessoas tão necessitadas. Essa é uma atitude não democrática. Os venezuelanos não estão vindo para o Brasil porque querem, mas por necessidade e socorro.

E o fator de que a governadora do estado Suely Campos (PP) é favorável ao fechamento da fronteira? Ela, inclusive, levou a questão para o Supremo Tribunal Federal.

Eu discordo do comportamento da governadora, pois entendo que é uma atitude de quem vai disputar as eleições dentro de alguns meses. Não é sincero da parte dela ir ao STF (que nada tem a ver com o caso) pedir pelo fechamento da fronteira. Ela só está dizendo o que uma parte da população do estado quer ouvir.

Como tem sido a sua negociação com o Governo Federal?

Eu brigo muito com a Casa Civil, porque eles demoraram muito para tomar providências. Agora, desde que o presidente Michel Temer fez sua primeira visita em fevereiro e com a Medida Provisória, as coisas começaram a acontecer. Mas, as ações deveriam ser mais rápidas. O excesso de burocracia faz as coisas demorarem. Ainda é necessário que muitas coisas avancem.

No que, por exemplo?

São dois os pontos principais. Primeiro: a questão da vacinação. Ainda que tenhamos conseguido vacinar 73% dos venezuelanos, é inaceitável que pessoas entrem no país sem ter tomado as vacinas obrigatórias. Isso não vale só para Roraima, mas para qualquer lugar do país. Porque, sem essa obrigação, doenças que já estão erradicadas por aqui voltam a aparecer, como o sarampo. Já temos 200 casos de sarampo confirmados no estado.

Além do sarampo tem algum outro surto?

Uma criança morreu de difteria no nosso hospital infantil, mas foi só um caso. Agora, nós estamos sujeitos a qualquer outro surto, já que na Venezuela a crise é generalizada, inclusive de falta de vacinas. As pessoas chegam sem carteira de vacinação e debilitados pela viagem difícil. Atualmente, 47% do nosso atendimento na rede de saúde básica é de venezuelanos.

E qual é o segundo ponto?

É a necessidade da retirada do excedente populacional, da interiorização, como se chama. Nós precisamos trabalhar na transferência das pessoas para outras cidades do país. Acontece que os acordos que se tenta fazer com governos e prefeituras de outros estados não avançam. E os venezuelanos querem ir para outros lugares, também. De acordo com o nosso mapeamento, mais da metade desses migrantes não desejam ficar em Boa Vista. Por isso eu defendo que o Exército atue nesse sentido. E defendo, também, que essas pessoas sejam levadas para estados que fazem divisa com países de língua espanhola, pois assim elas terão duas opções: ir para lugares que falam a sua língua ou ficar em uma região com mais opções de emprego. É dar a oportunidade para essas pessoas fazerem escolhas.

Você acha que se o foco dessa crise fosse em um outro estado a comoção nacional seria diferente?

Quando houve a questão dos haitianos que chegavam ao Acre, o Governo Federal interveio deslocando aquelas pessoas para São Paulo, o que gerou muita controvérsia. Mas chamou muita atenção. No caso da Venezuela, o processo é mais constante: enquanto a situação política e econômica não melhorar, a vinda deles para cá não vai parar. No entanto, acho, também, que se isso acontecesse em São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte chamaria muito mais a atenção, porque é onde parece que todos ficam mais ligados, como se o Brasil fosse só aquilo. Os estados mais afastados, principalmente Roraima, não são tão conhecidos como a região sudeste e sul do país. É muito comum ler matérias de jornais em que Roraima aparece com a sigla RO (que é Rondônia). O próprio Ministério da Educação já mandou livros didáticos de Roraima para Rondônia, para se ter uma ideia. O fato de estarmos muito longe do centro das atenções faz com que o grosso da população brasileira tenha somente no imaginário o que acontece por aqui.

Qual é a sua avaliação da segunda visita do presidente Temer a Boa Vista, que aconteceu no final de junho? Ele está engajado e comprometido com as questões apresentadas?

Ele está visivelmente preocupado com a nossa situação. E ele só não foi até Pacaraima [município fronteiriço onde há uma base de triagem dos migrantes] por causa das chuvas fortes dessa época do ano. Acontece que esse é um processo que nem o presidente sabe como lidar direito. E dentro da Casa Civil, como eu disse, existe uma grande burocracia por parte do comitê que cuida dos procedimentos e, por isso, não consegue resolver a saída do excedente populacional. É um comitê muito complicado, que não sabe priorizar, não sabe decidir. Por isso defendo que esse processo aconteça através do Exército, que faz um trabalho fantástico na cidade, são mais objetivos e têm uma logística melhor.

De que forma o Governo Federal pode ajudar mais na questão do acolhimento do contingente de pessoas que chegam em Boa Vista?

Nós temos oito abrigos e outros dois estão sendo construídos. Não cabe abrir mais abrigos. O Governo Federal trabalha junto com a ONU e principalmente com a ACNUR nas ações que envolvem as relações internacionais. Portanto, a única forma que o Governo Brasileiro tem de ajudar é, realmente, na retirada do excedente de pessoas que estão na cidade, porque não damos mais conta de atender a todos. E se isso não for feito logo, já em janeiro ou fevereiro do ano que vem a cidade vai colapsar.

Você falou da ONU. Como o Brasil se insere nesse contexto global de crise humanitária envolvendo populações de migrantes e refugiados?

O mundo está passando por uma transformação e os países não estão sabendo lidar com tudo isso. A integração vai se dando sempre com muita dificuldade, mas vejo o Brasil receber os migrantes e refugiados de uma maneira bastante humana. É evidente que não damos conta de tudo, mas o estado está com a fronteira aberta, Boa Vista é uma cidade que conta com uma certa estrutura e as pessoas abrigadas recebem três alimentações por dia. Acontece que daqui a pouco o dinheiro vai acabar e, então, entra o aspecto de o Brasil aprender dividir esse problema, que não é só nosso, mas de todos os estados, de toda a Federação.

Você e o presidente são do mesmo partido, o MDB. Isso não deveria facilitar nas negociações?

Acho que independe de partidos, sinceramente. Ele trouxe recursos para o Governo do Estado [a governadora é do Partido Progressista]e não para o Município, por exemplo. Eu estou precisando de um milhão de coisas. Agora, ele veio para cá e auxiliou alguém que, inclusive politicamente, não está do meu lado. Eu não tenho como reclamar disso.

Como você avalia o governo do presidente Temer?

É difícil para mim falar sendo do MDB. A imagem do presidente não é boa e ele tem uma rejeição muito grande. Mas, acho que para esse processo de transformação desde a saída do PT até uma nova eleição… É melhor que seja com ele do que com outra pessoa. É um processo necessário para equilibrar o nosso país a partir do ano que vem. E eu espero, sinceramente, que as pessoas tenham noção da importância do voto.

Como você se define politicamente?

Eu sou alguém que ainda acredita na política e que procura fazer o melhor possível com o mandato que tenho.

Alguma consideração a respeito das eleições que se aproximam?

Eu sou contra o Bolsonaro e acho um absurdo ver qualquer mulher votando nele por tudo o que ele fala. Muito me preocupa o voto de revolta nessa eleição e do que possa acontecer com o país.

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