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Crise dos homens

Bósnia alerta o mundo para riscos da divisão étnica

Publicado

Autor/Imagem:
Andrew Higgins

Quando ocorre um incêndio na cidade bósnia de Mostar, o bombeiro Sabit Golos sabe que não precisa se preocupar, a não ser que as chamas se alastrem para o lado muçulmano daquela que, de 1992 até 1994, foi a linha de frente de um conflito étnico perverso.

É que Mostar, embora viva em paz há muito tempo, tem duas brigadas separadas contra incêndios, uma composta principalmente por muçulmanos, como Golos, e a outra formada exclusivamente por croatas católicos.

Enquanto a Europa e os Estados Unidos lutam com a ascensão do nacionalismo étnico, as divisões da Bósnia constituem uma lição tenebrosa de como as comunidades podem continuar separadas muito depois que a maioria já esqueceu o motivo pelo qual se separaram.

Aqui, a desunião arraigada refletiu-se nas recentes eleições nacionais, marcadas pela retórica nacionalista e o questionamento aberto da existência da Bósnia, até hoje, como Estado.

“Nos dias atuais, a Europa está preocupada com a ascensão da extrema direita, mas este lugar foi longe demais e acabou mostrando como o etno-nacionalismo pode ser perigoso e persistente”, afirmou Tim Clancy, um americano que reside na Bósnia e trabalhou em Mostar durante a guerra ajudando as vítimas dos combates.

Ambos os corpos de bombeiro de Mostar fazem parte do mesmo serviço de combate ao fogo da prefeitura – assim como as duas companhias de coleta de lixo da cidade, os dois hospitais, as duas companhias de eletricidade, duas estações rodoviárias, duas boates e dois times de futebol atendem à mesma cidade.

“Aqui, você está olhando para o seu próprio futuro”, disse Adam Huskic, um estudioso de política e relações internacionais da Escola de Ciência e Tecnologia em Sarajevo. “Nós lidamos durante anos com a ascensão do populismo nacionalista”.

O acordo de 1995 que estancou o banho de sangue na Bósnia – concluído pelos líderes da Bósnia, Sérvia e Croácia – só contribuiu para tornar mais fechadas as elites nacionalistas que levaram adiante o processo contra a guerra. Ele dividiu a Bósnia em duas “entidades” – uma Republika Srpska governada pelos sérvios, e uma Federação Muçulmano-Croata mista da Bósnia e Herzegovina, controladas por três presidentes eleitos, um para cada etnia: sérvios bósnios, croatas e muçulmanos, conhecidos como bosníacos.

A autoridade sofreu novas divisões, em grande parte segundo as linhas étnicas, com a criação de dez unidades de governo locais.

Golos, o bombeiro muçulmano, afirma que tem muitos amigos do outro lado das fronteiras étnicas e não tem nenhuma inimizade em relação aos sérvios, que começaram a luta, mas que agora, em sua maioria, deixaram a cidade, ou aos croatas, que despejaram uma tempestade de granadas e fogo dos caças sobre o seu bairro.

Entretanto, ele teme que as divisões da época da guerra tenham se aprofundado. Em razão das escolas em grande parte segregadas, uma geração de jovens croatas e bósnios do pós-guerra agora, frequentemente, só conhece os membros do seu próprio grupo.

“Andamos para trás, em lugar de ir para frente”, disse Golos.

Por mais de duas décadas, o frágil sistema bósnio desafiou as previsões de um colapso iminente.

Entretanto, a sua capacidade de sobreviver contra todas as probabilidades, agora está seriamente ameaçada, disse Paddy Ashdown, um político britânico que de 2002 a 2006 foi o funcionário estrangeiro de mais alto nível na Bósnia.

É dele este prognóstico sombrio que se seguiu às eleições nacionais realizadas em outubro, dominadas, particularmente na Republika Srpska, por apelos à divisão em nome de uma lealdade tribal.

O resultado das urnas, que escolheram um nacionalista da linha dura como membro sérvio da presidência, enfureceu os croatas, que reclamam que a eleição para o seu representante na presidência foi contaminada por uma votação etnicamente impura: muitos muçulmanos votaram pelo vencedor croata, um moderado, agora denunciado pela linha dura por causa do seu apoio a outra linha étnica.

Neste momento, o problema, segundo Ashdown, é que a Europa e os Estados Unidos também estão muito polarizados e já não se interessam tanto pelos problemas da Bósnia. O vazio está sendo preenchido pela Rússia como protetora dos sérvios, e pela Turquia em favor dos muçulmanos.

Em um recente relatório sobre a Bósnia enviado à ONU, o atual alto representante em Sarajevo, Valentin Unzko, queixou-se de que antes das eleições, políticos e partidos bósnios “se concentravam basicamente em críticas mútuas ou à comunidade internacional, e insistiam em questões nacionalistas causadoras de divisões, em vez de governar efetivamente e adotar as necessárias reformas”.

Esta retórica, amplificada por um sistema econômico paternalista no qual empregos e os despojos da corrupção frequentemente acabam sendo divididos segundo linhas étnicas, prejudicou consideravelmente a Bósnia como Estado em condições de funcionar.

As diferenças entre bósnios, croatas e sérvios são tão pequenas – eles falam a mesma língua, são fisicamente parecidos e em geral comem a mesma comida – que alguns estudiosos recorreram a Freud e ao que ele definiu como “narcisismo de diferenças mínimas” para explicar a fúria dos seus nacionalismos rivais.

A única característica clara é a religião, embora poucos a pratiquem regularmente e quase todos gostem de frequentar bares e cafés.

A maior praga da Bósnia, disse Amna Popovac, ativista em Mostar do partido multiétnico Nasa Stranka, são os seus líderes políticos nacionalistas, que alimentam os temores das comunidades que eles declaram representar para salvarem a si mesmos e a um sistema profundamente corrupto graças ao qual enriqueceram.

Amna disse: “Sigam apenas o dinheiro”.

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