Brasil sem jeito
Juarez, negro, mestre, repórter, vítima de racismo
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em“Eu poderia ter morrido”. Juarez Xavier, 60 anos, é professor, jornalista, militante do movimento negro, candomblecista, marido e pai. Há pouco mais de um mês, ele foi vítima de um ataque após reagir a ofensas racistas em Bauru, cidade onde mora. “Uma jornalista alemã me perguntou: ‘e se você não reagisse?’, não teria sido eu. O problema não foi a minha reação, e sim a provocação do cara”, respondeu de forma enfática enquanto pontuava os acontecimentos que o construíram como indivíduo. “Um ato banal me deu a consciência de que eu sou mortal, de que eu com certeza já vivi grande parte da minha vida”.
A lesão corporal – como foi registrado o caso pela Polícia Civil – ocorreu dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, que simboliza a luta contra o racismo no país. Xavier voltava para a casa a pé, em uma das principais avenidas da cidade. Do outro lado da calçada, um homem fazia gestos em sua direção, até que, ao se aproximar dele, Juarez escutou os xingamentos: ‘Macaco! Macaco!’. Ele reagiu e levou duas facadas – uma no braço esquerdo, a segunda nas costas.
Um ano antes, no dia 7 de outubro, outro ataque com facas marcou o movimento negro brasileiro. Era um domingo e o país tinha acabado de passar pelo primeiro turno de uma das eleições mais tensas da história republicana. Uma divergência política em Salvador terminou com 12 facadas em Romualdo Rosário da Costa, o Mestre Moa do Katendê. Moa morreu na madrugada do dia 8. Com 63 anos, mestre de capoeira e referência na luta política antirracista da Bahia, Moa virou o símbolo de um processo eleitoral destacado pelo crescimento da extrema direita no cenário político nacional e por discursos de intolerância à diversidade.
Essas duas histórias se cruzam na própria experiência do professor: “Eu tive uma relação próxima, [Moa do Katende] foi um amigo do universo da capoeira e ele morreu de forma brutal no processo eleitoral mais bárbaro da história do Brasil”, relembra. Ao refletir sobre seu caso, Xavier considera ter sido marcante por ter ocorrido no Dia Nacional da Consciência Negra, data que, “do ponto de vista simbólico, talvez tenha sido uma das marcas mais significativas do movimento negro: pautar um debate sobre a questão racial a partir da perspectiva do negro, e não da perspectiva oficial como é o 13 de maio”.
A violência sistemática contra os negros é diária nas periferias. Dados do Atlas da Violência deste ano revelam que, em 2017, 75,5% das mortes por homicídio no Brasil foram de pessoas pretas ou pardas. Foram 48.229 negros mortos naquele ano, quase 132 por dia.
Apesar da quantidade expressiva, o cotidiano perverso e a política de estado racista afasta o genocídio da população negra dos noticiários. No caso de Juarez, um detalhe foi importante para o caso ganhar repercussão nacional (e internacional) nos jornais. Além da sua trajetória no movimento negro, ele é professor em uma universidade pública. E o respaldo da instituição foi fundamental para aprofundar este debate:
“A universidade cria condições de você ter interlocuções com a cidade. Se tivesse acontecido em São Paulo, talvez a repercussão não fosse a mesma, porque isso acontece diariamente em São Paulo. A violência nas periferias é cotidiana. Você falar da universidade então, você acaba falando de um espaço e de um local de mais segurança. E as universidades públicas têm um papel importante no interior de São Paulo. Muitas coisas repercutem por conta da presença da universidade”.
Quem chega no oitavo andar da reitoria da Unesp, no centro de São Paulo, encontra uma sala com algumas mesas separadas por vidros, formando pequenas áreas de trabalho. No fundo do corredor fica a mesa reservada ao professor Juarez Xavier. A caneca do Corinthians ao lado do computador não deixa mentir. Nos últimos dois anos, esse tem sido o principal ambiente de trabalho do Juarez, escolhido em 2017 como assessor da Pró-Reitoria de Extensão da Unesp – área que cuida dos projetos de extensão de toda a universidade.
A gestão de projetos em unidades de ensino não é uma novidade para ele. Nascido em 1959 na Vila Mazzei, Zona Norte de São Paulo, Xavier entrou no curso de jornalismo em 1981. Em pouco tempo o jovem de 22 anos despontava em um movimento político efervescente e combativo não só nos muros da academia. Na época, ele era liderança no movimento estudantil, e foi eleito presidente do Diretório Central dos Estudantes da PUC (DCE).
A participação cada vez mais intensa nos debates e na militância foram essenciais para sua formação como jornalista. Juarez insiste: “nunca achei que fossem dois caminhos diferentes. A militância e o jornalismo fazem parte da mesma coisa”. Para ele, o jornalismo precisa se posicionar e ter um compromisso social. “A minha trajetória foi decisivamente marcada por essa posição: de que o jornalismo e a militância política são as mesmas coisas. Ações diferentes, visões diferentes, mas com o mesmo projeto”, destaca.
Trabalhar em uma redação foi outro ponto importante na carreira profissional de Juarez. Ainda recém-formado, ele começou no Notícias Populares, com a cobertura sindical. Depois passou pela Gazeta Mercantil e Diário Popular até entrar na assessoria de imprensa. Atuou ainda em jornais sindicais, clandestinos, montou os projetos de comunicação do Sindicato do Securitários, Sindicatos Químicos e da Federação Nacional. Foi assessor parlamentar do vereador Eustáquio Vital Nolasco (PCdoB/SP), na década de 1990. Ainda neste período fez da sala de aula seu local de trabalho.
A passagem de Juarez por redações nos ajuda a compreender a relação do negro com os grandes jornais (ocupados e pautados por pessoas brancas). Muitos companheiros do professor entraram em grandes redações, mas poucos conseguiram chegar às áreas nobres dos jornais.
“Na redação, o filé mignon é a política e economia. A cultura é muito importante, tem outras editorias que se destacam, mas o que é mais valorizado dentro dos veículos são as áreas da política e economia. Quantos jornalistas de ponta negros você tem de fato nessas coberturas?”, observa. “Isso frustrou um pouco a minha geração porque a gente tinha um grupo grande de pessoas que discutiam essas coisas e o jornalismo de forma séria. Tínhamos pessoas muito boas, boas pra caramba e que não tiveram destaques nessas editorias da forma que os brancos tiveram”, relembra Juarez.
Um exemplo citado pelo professor é o Projeto Folha de São Paulo em 1984. Com o objetivo de trazer pessoas jovens para o núcleo da redação, Otávio Frias Filho, diretor do jornal, começa a recrutar jornalistas em universidades para tornar a redação “mais crítica e plural”. Para Juarez, o que o grupo Folha fazia, na verdade, era contratar jovens brancos de classe média com a mesma perspectiva, alinhados politicamente ao movimento de derrubada da ditadura militar.
“A redação passa a ser uma coisa mais homogênea do ponto de vista político, social, cultural e intelectual. E passa a fazer uma cobertura espelhada a essa perspectiva. Pessoas que leem as mesmas coisas, viajam com as mesmas condições, têm os mesmos valores. Isso intensificou uma cultura de favorecer o elemento branco que chegava nas redações. Pode parecer bobagem, mas isso afastou muitos negros do jornalismo cotidiano diário. Os que ficaram, acabaram fazendo coberturas importantes de cidades, violência, polícia, mas não estavam, via de regra, nas editorias consideradas ‘nobres’ do jornalismo: política e economia”.
As consequências dessas decisões foram determinantes para o cenário do jornalismo nos dias de hoje. De acordo com Juarez, o jornalismo vive uma crise cognitiva por conta das escolhas da grande imprensa. “O que a gente encontra hoje, na minha visão, não é só uma crise do modelo de negócio, mas principalmente uma crise cognitiva. O jornalismo deixou de ter uma prerrogativa de construir relatos que as pessoas consideram válidas para sua vida cotidiana. Deixou de fazer cobertura importantes e fundamentais, como por exemplo a periferia”, enfatiza o professor. “Você tem uma vida social na periferia que as pessoas não entendem porque não cobrem isso. Começa a estigmatizar. Você faz uma cobertura pequena de um universo que é o universo da classe média. Com o passar do tempo você constrói uma realidade paralela, que não corresponde à realidade”.
Juarez entrou pela primeira vez em uma sala de aula como professor em 1989, em um colégio no distrito de Ermelino Matarazzo, extremo leste de São Paulo. A experiência foi bem sucedida e direcionou a carreira como professor universitário. Xavier deu aulas em faculdades da capital e do interior, trocando experiências com alunos. Tornou-se diretor da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul) logo em sua entrada na faculdade, sendo o seu primeiro cargo de gestão.
Em 2011, ele ingressou como docente na Unesp de Bauru e se mudou da capital para o interior. Ainda que o cenário da universidade pública não fosse novo, ele se surpreendeu com o contexto em que o curso de jornalismo estava inserido. Contratado para dar aulas de Jornalismo Especializado, Juarez encontrou um cenário de esvaziamento do debate. De forma até paradoxal, a primeira faculdade pública que ele começou trabalhar tinha um grau de envolvimento político menor no curso de jornalismo do que os outros espaços de universidades particulares.
Mesmo assim, ele foi coordenador de curso, chefe de departamento e, em 2017, se tornou assessor da Pró-Reitoria de Extensão. Um universo que foi terreno fértil para a criação de um dos projetos mais importantes na carreira acadêmica do professor. Assim que chegou na faculdade, três alunos o procuraram para montar um grupo que pretendia discutir economia. “Economia Criativa!”, respondeu em seguida. Estava se formando o NeoCriativa – Núcleo de Estudos e Observações em Economia Criativa, projeto de extensão que tinha como objetivo discutir as cadeias produtivas a partir dos arranjos de música da cidade. Hoje o projeto não atua mais de forma extensionista, mas é um grupo de pesquisa que reúne pesquisadores desde a graduação.
Nos últimos 8 anos, Xavier foi conhecendo cada vez mais a cidade e participando de movimentos locais. Mas a experiência no jornalismo e o enfrentamento ao racismo não o tornaram imune aos racistas. Juarez é um dos expoentes do movimento negro, conhecido por suas pesquisas nas áreas da comunicação e economia criativa e, mais recente, por sua atuação na Unesp como presidente no processo de averiguação de fraudes no ingresso de estudantes pretos e pardos à universidade.
Os golpes de facas sofridos no último 20 de novembro representam um ataque brutal a vida, mas também expõe um movimento em curso no país. O avanço e as conquistas políticas da extrema direita intensificam o racismo latente e estrutural no Brasil. A tensão na relação polícia-periferia se acentua e o genocídio da população negra ganha contornos cada vez mais institucionais.
Este acontecimento foi pautado em quase todas as grandes mídias do país; diversos movimentos e agentes políticos se solidarizaram com Juarez. Em Bauru não foi diferente. Manifestações, notas de repúdio e cartas em apoio ao professor foram feitas por coletivos e grupos políticos.
Às pessoas próximas, o atentado sofrido pelo professor foi entendido como um ataque as próprias expectativas: “uma aluna negra veio falar comigo muito emocionada, me agradecendo. Eu fiquei muito tocado com aquilo. No final de semana seguinte um carro parou do meu lado, um aluno desceu, se apresentou e agradeceu. Isso mexeu muito comigo isso, não só sentido de ‘ah, agora eu vou fazer’, mas no como eu quero fazer as coisas a partir de agora” destaca Juarez.
Para o professor a reflexão que fica vai além do fato em si: “Abre-se diante de mim uma encruzilhada. Não tem sentido, depois de eu ter vivido a maior parte da minha vida, eu virar um homem velho amedrontado. Eu vou continuar fazendo o que eu faço. Eu vou continuar mantendo os compromissos que eu tenho. Vou continuar fazendo o enfrentamento racial”, conclui.
Depois do ataque, o agressor foi preso em flagrante, mas pagou fiança e está sendo investigado em liberdade. Juarez Xavier aguarda a manifestação do Ministério Público para recorrer a tipificação do crime – que foi registrado como lesão corporal e injúria racial – para qualificá-lo como tentativa de homicídio e crime de racismo.