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É isso ou nada

Bolsonaro usa um perigoso estilo de governar o País

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Autor/Imagem:
Roberto Amaral

Está em curso no Brasil um projeto totalitário, já sem disfarces, com perigosa contaminação religiosa primitiva, fatal para a democracia. Neste cenário, mais grave que a encenação goebbeliana do secretário defenestrado por acidente de trabalho são os elogios do capitão seu chefe às ideias do auxiliar, pois eles resumem o cerne ideológico do bolsonarismo.

Em live gravada pouco antes da presepada, o presidente, declara: “Ao meu lado, o Roberto Alvim, o nosso secretário de Cultura. Depois de décadas, agora temos sim um secretário de verdade. Que atende o interesse da maioria da população brasileira. População conservadora e cristã. Muito obrigado por ter aceito essa missão. Você sabia que não ia ser fácil, né?”

À noite, o secretario divulgava seu discurso formal e contundentemente nazista, ademais de pobre de qualquer originalidade. O que vale para a cultura, no discurso do bolsonarismo, vale para a educação (e o capitão fez questão de ler seu pronunciamento ao lado do ainda ministro da Educação e do então secretário da Cultura).

A cultura e a educação sempre foram (com a comunicação/propaganda) os canais de preferência de atuação ideológica dos projetos autoritários. Assim foi no nazismo e nos fascismos em todas as suas variantes e vertentes, assim foi entre nós na ditadura do Estado Novo, assim igualmente no mandarinato militar. Assim no atual regime.

O fascismo – qualquer expressão de poder fascista – é binário e divide o mundo entre o bem e o mal, o bom e o mau, o sadio e o doente. Mal, mau, doente são as classificações reservadas aos divergentes. Por isso, Goebbels, para “salvar” a Alemanha, falava no imperativo de uma arte germânica, de raiz, conservadora, nacionalista, livre de influências e, por isso, “pura”. Ou isso, ou nada.

Ou isso ou nada é o que proclama o bolsonarismo; por isso diz poder fechar o STF com um jipe e dois cabos, e retomar as práticas do AI-5 se a população brasileira se der ao luxo de ir às ruas protestar por pão, emprego ou liberdade.

Por isso o avanço sobre as instituições científicas e culturais, a destruição da educação pública, o aumento da concentração de renda e da desigualdade social, o descaso pelo desemprego larvar, de par com a destruição da soberania nacional, a renúncia ao exercício de uma política externa própria e a entrega do destino do meio ambiente aos seus agressores.

Esse projeto vem desde a posse, quando o ex-deputado do baixo clero anunciou que seu governo não era de fazer, mas de desconstruir, ou seja, desfazer o país para, em cima da terra arrasada, “doente”, construir a sociedade “sadia”.

A ideia de que o povo precisa ser salvo de uma “cultura doente” é apenas uma variante do discurso segundo o qual o povo precisa ser salvo de uma “política doente”, de uma “democracia doente”. Ao final, “doente” será mesmo o povo, e ele precisará ser substituído pelo “novo homem”, filho da “nova cultura”. Ou isso ou nada. Eis o bolsonarismo.

A esta altura, pois, discutir o que muda mediante a troca do dramaturgo (que caiu não pelas suas ideias, pois são as do capitão, mas por havê-las exposto de forma inábil) por antiga atriz de novelas da Globo equivale a tergiversar sobre a questão central e sobre a qual, enquanto podemos, devemos voltar todas as atenções: o projeto reacionário-obscurantista-autoritário marchando para o totalitarismo representado pelo bolsonarismo, cujo chefe tem Pinochet e Stroessner como ídolos e exemplos, e a ditadura, a tortura e o extermínio de adversários como métodos de conquista e conservação do poder.

O que significa uma política “conservadora e cristã”, segundo o bolsonarismo, senão o fechamento de espaços da cultura, das artes e do saber em geral à criação? Senão a promessa de intolerância religiosa, em país multicultural e multirreligioso e em um Estado laico?

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) abençoou o golpe de 1964 e o AI-5, sob o qual sofreram centenas de católicos patriotas. Até aqui está silente em face do projeto fascista, e setores dominantes do pentecostalismo o animam e apoiam as pautas mais reacionárias do bolsonarismo. A Igreja Católica carrega a tradição de imiscuir-se nas coisas do Estado. Ao preço mesmo da negação dos princípios cristãos, aliou-se a regimes facínoras como o de Mussolini, mediante o Tratado de Latrão (1929) e apoiou o governo Hitler.

Os judeus de São Paulo, que têm a memória do holocausto (que igualmente imolou, lembremos, ciganos, comunistas, intelectuais, eslavos, deficientes físicos e mentais, homossexuais, negros e testemunhas de Jeová) reagiram ao ataque peçonhento e determinaram a queda do secretário. Mas devem saber que não chegaram nem perto do núcleo mandante – essencialmente antidemocrático – constituído por várias formações de poder e estamentos de classe.

Lá estão, além de setores majoritários das forças armadas e do aparelho repressor de uma forma geral, as organizações pentecostais primitivas e, fundamentalmente, o poder econômico em todas as suas expressões, como patrocinador da “pauta Guedes”, cuja implantação defende, ainda que ao preço da instalação de uma ditadura.

No país assolado pelo bolsonarismo, entre os organismos que integram o aparelho repressor – forças armadas, polícias militares e civis etc. – inscreveu-se o Ministério Público, em suas duas instâncias. Não sem razão, o mesmo procurador que denunciou o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, de suposto crime de calúnia por criticar o criticável Sergio Moro – figura central no projeto fascistizante –, agora, atendendo ao mesmo partidarismo e à mesma pusilanimidade, denuncia o jornalista Glenn Greenwald por “interceptação telefônica de autoridades”.

A denúncia inaceitável não é peça jurídica, mas simples vindita contra o jornalista, diretor do site The Intercept Brasil, pois, à sua coragem devemos a revelação dos diálogos sórdidos mantidos entre o juiz Moro e os procuradores da República de Curitiba, que, rasgando o direito, defraudando provas, condenaram à prisão, entre outros, o ex-presidente Lula.

Dos jornalões não se deve esperar muita coisa, mas é fundamental que os jornalistas, como classe, se ponham em defesa do colega, sob pena de que a liberdade de imprensa, como sonha Bolsonaro, volte a ser tratada como era nos tempos da ditadura militar, cuja má memória tanto encanta o capitão afastado das fileiras do exército por mau comportamento.

No dia do vídeo goebbeliano do secretário de Cultura a Bolsa de Valores de São Paulo subiu 1,5%, estabelecendo novo recorde. Os “analistas” foram ouvidos pelos grandes jornais e se apressaram em afirmar que o pronunciamento nazista e a agenda econômica não se misturam. Talvez não saibam que em 1933 os magnatas da indústria alemã – leia-se: Krupp, BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken etc – decidiram apoiar a campanha de Hitler, empolgados com as promessas de glórias do III Reich. Deu no que deu.

O especialista Samuel Pessôa, sócio da consultora Reliance, nos diz que “o mercado não tem posição política e opera com base na programação de ganhos. Enquanto a economia vai bem, vida que segue”. Para o economista-chefe do Banco Fator, o que importa é que o governo “está passando as reformas”. Para outro analista, Ilmar Arbitmann, da Ativa Investimentos, o discurso sobre guerra cultural e arte nacionalista “não interfere na aprovação das reformas, que é a métrica pela qual o mercado vai avaliar o governo”. Eis uma amostra do apreço do dito “mercado” pela nossa democracia.

Para o chamado empresariado brasileiro pouco importa para onde caminha o País, como quando da decretação do AI-5, que apoiaram, pois seus lucros estão garantidos se garantida estiver a “pauta Guedes” com o atual ou outro preposto, com este ou outro capitão. Nada, exceto alguma tênue ameaça progressista, abala o mercado e o setor financeiro que controla a economia e dita os rumos da política neoliberal, que tem no bolsonarismo sua infantaria.

Desvalido de princípios éticos ou compromissos sociais, o “mercado” só se vê comprometido com a promessa de ganhos fáceis que lhe ensejam a ciranda financeira e as esperadas privatizações, mesmo que ao preço de derruição da democracia, erroneamente convencidos os empresários de que o fim das liberdades só atingirá os trabalhadores.

Mas que esperar de um empresariado – ainda chamemos assim a malta de especuladores – que, depois de ser liderado por Roberto Simonsen, tem um Paulo Skaf como presidente da Fiesp? Ao fim e ao cabo, o bolsonarismo poderá não nos legar uma ditadura abertamente fascista. Mas tudo fará para isso. A nós cabe detê-lo e derrotá-lo.

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