Fracasso antecipado da guerra americana ao Estado Islâmico
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emPense no novo “califado” do Estado Islâmico, anteriormente conhecido como Estado Islâmico do Iraque e Síria (Isis, sigla em inglês), como um presente de George W. Bush e Dick Cheney para o mundo (contando também com a auxiliadora mão da Arábia Saudita e outros financiadores do extremismo do Golfo Pérsico). Não é estranho o pouco crédito que eles recebem por isso, e pelo fato de as fronteiras do Oriente Médio –traçadas pelas potências europeias na esteira da Primeira Guerra Mundial – estarem sendo apagadas em uma onda de sangue?
Se George e Dick não tivessem decidido invadir o Iraque, não tivessem levantado o espectro da destruição nuclear e alegado que o regime de Saddam Hussein estava de alguma maneira envolvido com a Al-Qaeda e aos ataques de 11 de Setembro; se eles não tivessem decidido enviar milhares de soldados norte-americanos para queimar e pilhar em Bagdá (“essas coisas acontecem…”), se não tivessem debandado o exército iraquiano, construindo bases militares por todo o país e, por fim, enfiado goela abaixo suas fantasias geopolíticas de dominar os desertos cheios de petróleo por toda a eternidade, o Isis provavelmente não teria a menor chance de nascer, não importando as tensões étnicas e religiosas da região. Eles essencialmente deram o impulso que destruiu o estado de poder ali e criou o tipo de vácuo que um movimento como o Isis é tão terrivelmente perfeito para preencher.
Olhando para trás, é realmente uma conquista marcante da dupla. Em setembro de 2001, quando George e Dick lançaram sua “Guerra Global ao Terror”, com fins de varrer da terra as – assim chamadas – “redes terroristas” em quase 60 países, havia bandos de jihadistas globais espalhados, enquanto a Al-Qaeda tinha uns dois campos de treinamento no Afeganistão e alguns apoiadores aqui e ali. Atualmente, na esteira das invasões do Afeganistão e do Iraque, uma intervenção aérea na Líbia, anos e anos de bombardeios com drones no Iêmen e Paquistão, os jihadistas estão florescendo e se espalhando pela África, assim como o Isis tomou para si partes significativas do Iraque e da Síria – quase chegando à fronteira com o Líbano – e não dá sinais de parar mesmo com a renovada campanha norte-americana de bombardeio, que só tende a fortalecer o movimento a longo prazo.
Existem extraordinários elementos na atual política norte-americana no Iraque e na Síria que não estão atraindo qualquer atenção. No Iraque, os EUA estão realizando ataques aéreos, enviando “conselheiros” e treinadores para ajudar a conter o avanço do Isis em Erbil, capital do Curdistão. Mas na Síria, a política de Washington é exatamente o oposto: ali, o maior oponente do Isis é o governo de Assad e os curdos sírios, nos enclaves ao norte. Ambos estão sob ataque do Isis, que já tomou um terço do país, incluindo a maioria de suas instalações de petróleo e gás.
Mas a política dos EUA, da Europa ocidental, dos sauditas e dos países do Golfo Pérsico é derrubar o presidente Bashar al-Assad, o que por acaso também é a política do Isis e de outros jihadistas na Síria. Se Assad sair do poder, então quem se beneficia é o Isis, uma vez que eles ou derrotarão, ou absorverão o resto da oposição armada no país. Em Washington, a Casa Branca finge que existe uma suposta oposição “moderada” na Síria, que está sendo auxiliada pelos EUA, Qatar, Turquia e Arábia Saudita. Todavia, se isso for mesmo verdade, eles estão ficando cada vez mais fracos. Logo mais, o novo califado poderá se estender até as fronteiras com o Irã ao leste, e para o Mediterrâneo a oeste, e a única força que tem a capacidade de evitar isso é o próprio exército da Síria.
A realidade da política dos EUA é apoiar o governo do Iraque, mas não o da Síria, contra o Isis. Porém, uma razão para que o grupo fosse capaz de ficar tão forte no Iraque é que ele pode contar com recursos e combatentes vindos da Síria. Nem tudo que deu errado no Iraque foi culpa do primeiro-ministro deposto Nouri al-Maliki, conforme foi noticiado como consenso entre os políticos e a mídia no Ocidente. Os políticos iraquianos têm dito pelos últimos dois anos que um apoio estrangeiro para os rebeldes da Síria acabaria, inevitavelmente, desestabilizando o Iraque também. É isso o que acontece agora.
Ao continuar essa política contraditória nos dois países, os EUA asseguraram que o Isis se reforçasse no Iraque com combatentes vindos da Síria, e vice-versa. Até o momento, Washington conseguiu escapar de levar a culpa pela ascensão do Isis, jogando-a toda no governo iraquiano, mas na realidade, foram eles próprios que criaram a situação no qual o Isis pode não só sobreviver, mas como também crescer.
O aumento drástico no alcance e na força das organizações jihadistas na Síria e no Iraque não era reconhecido pelos políticos e pela imprensa no Ocidente, ao menos não até recentemente. Uma das principais razões para isso é que os governos ocidentais e suas forças de segurança definem, de maneira míope, ameaças jihadistas como forças diretamente controladas pelo núcleo da al-Qaeda. Isso permite a eles apresentar um quadro muito mais “bonito” de seus sucessos na suposta guerra ao terror, do que o quadro obscuro que é a realidade.
Na verdade, a ideia de que os únicos jihadistas que devem ser motivo de preocupação são os que têm a benção oficial da al-Qaeda é ingênua e auto enganadora, pois ignora que, de fato, o Isis foi criticado pelo líder da al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, por sua excessiva violência e sectarismo.
Grupos jihadistas ideologicamente próximos à al-Qaeda foram re-rotulados como “moderados”, desde que suas ações mostrassem alinhamento com os objetivos da política dos EUA. Na Síria, os norte-americanos apoiaram um plano feito pelos sauditas de criar um “Fronte Sul”, baseado na Jordânia, que seria hostil ao governo de Assad em Damasco, ao mesmo tempo que era também hostil aos rebeldes da al-Qaeda no norte e no leste. A poderosa, mas supostamente moderada, Brigada Yarmouk, seria a principal recipiente dos mísseis antiaéreos fornecidos pela Arábia Saudita, mas inúmeros vídeos mostraram a Brigada lutando colaborativamente com o Jabhat al-Nusra, a franquia oficial da al-Qaeda na Síria, e uma “organização terrorista”, de acordo com o Departamento de Estado dos EUA. Uma vez que era provável que, no calor das batalhas, esses dois grupos compartilhassem munição, Washington estava efetivamente permitindo que armamento avançado fosse entregue para seu mais mortal inimigo. Oficiais iraquianos confirmaram que eles capturaram armas sofisticadas de combatentes do Isis, fornecidas originalmente para forças consideradas anti-al-Qaeda na Síria.
O nome “al-Qaeda” sempre foi aplicada de maneira flexível quando se tinha que identificar um inimigo. No Iraque, em 2003 e 2004, enquanto oposições iraquianas armadas contra a ocupação no país, os oficiais norte-americanos atribuíram a maioria dos ataques à al-Qaeda, apesar de muitos destes terem sido realizados por nacionalistas e grupos do Partido Baath, de Saddam Hussein. Propagandas como essas ajudaram a persuadir cerca de 60% dos eleitores nos EUA antes da invasão do Iraque – de que havia uma conexão entre Saddam Hussein e os responsáveis pelo 11 de Setembro, apesar da falta de qualquer evidência quanto a isso. No próprio Irã, assim como por todo o mundo muçulmano, essas acusações beneficiaram a al-Qaeda, por exagerar o papel do grupo na resistência contra a ocupação dos EUA e do Reino Unido.
Táticas de relações públicas precisamente opostas a essa foram empregadas pelos governos ocidentais em 2011, na Líbia, onde foi acobertada qualquer similaridade ente a al-Qaeda e os rebeldes apoiados pela Otan contra o líder líbio Muammar Qaddafi. Apenas aqueles jihadistas que tinham uma ligação operacional direta com o núcleo de Osama Bin Laden eram considerados perigosos. A falsidade na alegação de que os jihadistas anti-Qaddafi na Líbia eram menos ameaçadores do que aqueles em contato direto com a al-Qaeda foi tragicamente exposta quando o embaixador dos EUA, Chris Stevens, foi morto por jihadistas em Benghazi, em setembro de 2012. Esses eram os mesmo combatentes exaltados pelos governos ocidentais e pela mídia por seu papel na revolta contra Qaddafi.
A al-Qaeda é mais uma ideia do que uma organização, e foi assim por muito tempo. Durante um período de cinco anos, após 1996, ela tinha unidades, recursos e campos no Afeganistão, mas estes foram eliminados após a derrubada do Talibã em 2001. Subsequentemente, o nome da al-Qaeda se tornou quase um grito de guerra, um conjunto de crenças islâmicas centradas na criação de um Estado islâmico com a imposição da lei Sharia – além de um retorno aos costumes islâmicos, à submissão das mulheres e a uma guerra santa contra outros muçulmanos, notavelmente os xiitas, que eram considerados hereges merecedores de morte. No centro dessa doutrina, para fazer uma guerra, está uma ênfase de autosacrficio e martírio como símbolo de fé religiosa e comprometimento. Isso resultou no uso de crentes fanáticos, mas não-treinados, como homens-bombas.
Sempre foi do interesse dos EUA e de outros governos que a al-Qaeda fosse vista como dona de uma estrutura de centro de comando, como um mini-Pentágono, ou como uma máfia. Essa é uma imagem reconfortante para o público, porque grupos organizados – por mais demoníacos que sejam – podem ser rastreados e eliminados, presos e mortos. Mais alarmante é a realidade de um movimento cujos aderentes são auto-recrutados e podem surgir em qualquer lugar.
A reunião de militantes de Osama bin Laden, à qual ele não chamou de al-Qaeda até o 11 de Setembro, era apenas um de muitos grupos jihadistas, há doze anos. Mas hoje, suas ideias e métodos são predominantes entre a maioria dos jihadistas por conta do prestígio e publicidade que ganhou através da destruição das Torres Gêmeas, a guerra no Iraque e sua demonização por Washington como fonte de todo mal anti-EUA. Atualmente, existem leves diferenças entre as crenças dos jihadistas, independente se estiverem ligadas ou não ao núcleo da al-Qaeda.
Não surpreendentemente, os governos preferem a figura fantasiada da al-Qaeda, pois isso os permite clamar vitórias quando conseguem matar seus mais conhecidos membros e aliados. Geralmente, aqueles que são mortos recebem um status quase militar, como “chefe de operações”, para aumentar o significado de seu falecimento. O ápice desse aspecto da “guerra ao terror” foi a publicidade pesada, mas altamente irrelevante, da morte de Osama bin Laden, em Abbottabad, no Paquistão, em 2011. Isso permitiu ao presidente Obama posar de frente ao público norte-americano como o homem que presidia o país na caçada final ao líder da al-Qaeda. Em termos práticos, todavia, sua morte teve pouco impacto nos grupos jihadistas à la al-Qaeda, cuja maior expansão veio depois.
As decisões cruciais que permitiram à al-Qaeda sobreviver, e posteriormente se expandir, aconteceram horas depois do ataque em 11 de Setembro. Praticamente todos os elementos significativos no projeto para atingir as Torres Gêmeas com aviões, assim como outros prédios icônicos dos EUA, apontavam para a Arábia Saudita, onde Bin Laden fazia parte da elite – seu pai era um associado próximo da monarquia no país. Citando um relatório da CIA de 2002, o documento oficial sobre o 11 de Setembro dizia que a al-Qaeda tinha seu financiamento vindo de “uma variedade de doadores e arrecadadores de fundos, principalmente nos país do Golfo [Pérsico] e, particularmente, da Arábia Saudita”.
Os investigadores que fizeram o relatório tiveram, de maneira repetida, seus acessos limitados ou negados quando buscavam informações sobre a Arábia Saudita. Ainda assim, o presidente W. Bush aparentemente nunca considerou apontar os sauditas como responsáveis pelo que aconteceu. A fuga dos EUA de proeminentes sauditas, incluindo parentes de Bin Laden, foi facilitada pelo governo norte-americano poucos dias após o 11 de Setembro. Mais significante ainda foram as 28 páginas do Relatório da Comissão do 11 de Setembro, sobre o relacionamento dos terroristas envolvidos com a Arábia Saudita, que foram cortadas e nunca publicadas, apesar da promessa de Obama em fazê-lo – alegando assunto de segurança nacional.
Em 2009, oito anos após os ataques, um cabo enviado por Hillary Clinton, à época secretária de estado, revelado pelo WikiLeaks, reportou que doadores da Arábia Saudita constituíam a fonte mais significante de financiamento de grupos terroristas sunitas ao redor do mundo. Mas apesar dessa admissão privada, os EUA e países da Europa ocidental permaneceram indiferentes aos pregadores sauditas, cujas mensagens, espalhadas por milhões através da televisão por satélite, YouTube e Twitter, clamavam pela morte dos xiitas hereges. Essas chamadas vieram enquanto bombas da al-Qaeda estava massacrando pessoas em bairros xiitas no Iraque. A linha fina em outro cabo para o Departamento do Estado dizia: “Arábia Saudita: anti-xiitismo como política externa?”. Hoje, cinco anos depois, os grupos apoiados pela Arábia Saudita têm um histórico de extremo sectarismo conta muçulmanos não-sunitas.
O Paquistão, ou melhor, o serviço de inteligência militar paquistanesa, o ISI, era outro parente da al-Qaeda, do Talibã e dos movimentos jihadistas em geral. Quando o Talibã estava se desintegrando sob o peso das bombas norte-americanas em 2001, suas forças no norte do Afeganistão foram emboscadas por forças anti-Talibã. Antes de se renderem, centenas de membros do ISI, treinadores e conselheiros militares foram rapidamente evacuados por ar. Apesar das claras evidências do patrocínio do ISI para o Talibã e outros jihadistas, Washington se recusou a confrontar o Paquistão, e assim sendo, abriu passagem para o ressurgimento do Talibã depois de 2003, algo que nem os EUA, nem a Otan foram capazes de reverter.
A “guerra ao terror” falhou porque não teve como alvo os movimentos jihadistas como um todo e, acima de tudo, não colocou como alvo a Arábia Saudita e o Paquistão, os dois países que promoveram o jihadismo como um credo e um movimento. Os EUA não o fizeram porque ambos eram importantes aliados seus. A Arábia Saudita é um enorme mercado para as armas norte-americanas e os sauditas cultivaram, e em ocasiões compraram, a influência de membros importantes da estrutura política nos EUA. O Paquistão é uma potência nuclear com uma população de 180 milhões de habitantes e um aparato militar com ligações próximas ao Pentágono.
O espetacular ressurgimento da al-Qaeda e seus descendentes aconteceu apesar da grande expansão dos serviços de inteligência dos EUA e do Reino Unido – assim como seus orçamentos de centenas de bilhões de dólares. Desde então, esses dois países, lutaram guerras no Afeganistão e no Iraque e adotaram procedimentos normalmente associados a Estados policiais, tais como a prisão sem julgamento, rendição, tortura e espionagem doméstica. Os governos travam a “guerra ao terror”, alegando que os direitos individuais dos cidadãos devem ser sacrificados para a segurança de todos.
Em face dessas controversas medidas de segurança, os movimentos que lutam contra não foram derrotado, ocorreu exatamente o inverso: se fortaleceram. Na época do 11 de Setembro, a al-Qaeda era uma organização pequena e não efetiva – hoje, em 2014, os grupos inspirados por eles são numerosos e poderosos.
Em outras palavras, a “guerra ao terror” – uma guerra que moldou o horizonte político do mundo inteiro desde 2001 – se mostrou um fracasso, mas até a queda de Mosul, ninguém prestou muita atenção.
Patrick Cockburn