Bolsonaro, o coveiro
Cloroquina pode matar. Não vá na onda do governo
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emA cura da Covid com o uso de cloroquina não está comprovada. Ao contrário, o tratamento dos pacientes com essa droga é muito arriscado, provocando efeitos colaterais como perda de visão, insuficiência hepática e renal, taquicardia e, pior, levar a óbito. Não há, portanto, nenhuma evidência científica de que a substância seja o caminho da salvação.
Essa a reação de diferentes profissionais da área de saúde após o Ministério da Saúde ter mudado seus procedimentos e oficializado a cloroquina no combate ao novo coronavírus, acatando ordem expressa do presidente Jair Bolsonaro. O protocolo liberado pelo governo, sem assinatura de um médico responsável, deixou epidemiologistas e infectologistas estupefatos.
Pelas normas liberadas pelo Ministério da Saúde, recomendando o uso da cloroquina, cabe ao médico a responsabilidade de prescrever a substância. Também é apresentado um formulário em que o paciente ou seus familiares devem ser informados de que, por efeito colateral, o remédio pode matar, e não curar. Isso vale inclusive para casos leves da Covid.
Reações
As reações no Brasil e no exterior à decisão imposta por Bolsonaro são de condenação. Michael Ryan, diretor de emergências da OMS, afirmou que “nem a cloroquina nem a hidroxicloroquina têm sido efetivas no tratamento da Covid-19 ou nas profilaxias contra a infecção pela doença. (…) Nós temos agora ensaios (clínicos – pesquisas) do Solidarity (iniciativa internacional em busca de tratamentos para a Covid-19) em vários países, nos quais a cloroquina e a hidroxicloroquina estão incluídas. Como OMS, nós recomendamos que, para a Covid-19, essas drogas sejam reservadas para uso dentro desses ensaios.”
Em nota, a Fundação Oswaldo Cruz sustenta não haver, até o momento, “nenhum estudo conclusivo sobre a cloroquina. O único estudo já publicado por pesquisadores da Fiocruz com pacientes de Covid-19 foi o CloroCovid-19. Os resultados iniciais do estudo mostram que pacientes graves com Covid-19 não devem usar doses altas de cloroquina. A pesquisa tem como objetivo avaliar a segurança e a eficácia de duas dosagens diferentes do medicamento e analisou 81 pacientes com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). As primeiras conclusões do estudo apontaram que pacientes graves com Covid-19 não devem usar a dose recomendada pelo consenso de tratamento chinês. Este foi o primeiro estudo no mundo que apresentou evidências sobre esse tipo de uso”.
O ex-diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde na gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, infectologista Julio Corda, advertiu que “o protocolo é uma armadilha para o médico que está na linha de frente [de combate à pandemia]. Haverá pressão popular para a prescrição do medicamento pelo médico, mas o próprio ministério condiciona a uma série de medidas, que não tem como aplicar no dia a dia, como o monitoramento eletrocardiográfico. O protocolo também é diferente do parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM), que fala sobre o uso em casos confirmados — o Ministério da Saúde não explicita isso”.
Segundo ele, “o que vai acontecer é que muitos médicos vão prescrever indiscriminadamente, não vão se atentar à nota publicada no protocolo do Ministério da Saúde ou à recomendação do CFM para usar em casos confirmados, e depois que o paciente tiver um problema associado ao medicamento, o médico poderá ser responsabilizado legalmente porque não está de acordo com o CFM, nem com o protocolo do Ministério da Saúde. Não é uma droga para ser usada na suspeita de um caso, nem pela população. Minha preocupação maior é que esta droga não tem evidências científicas e há literatura que inclusive condena o uso.”
Já a bióloga Natália Pasternak, que tem PhD com pós-doutorado em Microbiologia, considerou que se trata de uma decisão (de liberar a cloroquina) “absurda”. A médica enfatizou que “a gente tem inúmeros trabalhos mostrando que a hidroxicloroquina não é eficiente no tratamento em nenhuma etapa da Covid-19. Essa mudança de protocolo vai trazer um uso precoce do medicamento sem nenhuma fundamentação científica”.
“Nós temos trabalhos em modelo animal, e é assim que se testa um medicamento. Devido ao hype e à pressão da população pela droga, as pessoas começaram a testar em humanos, e foi passada uma impressão errada de que o medicamento pudesse funcionar. Primeiro testaram em células, células genéricas, uma linhagem fácil de manipular em laboratório, e funcionou a cloroquina, mas isso não quer dizer que funcionaria em outras células e em animais. E foi exatamente isso que os outros testes mostraram: que não funciona”, afirmou a especialista.
Ainda segundo a doutora Pasternak, “você passa a testar em animais e a hidroxicloroquina não funciona. Inclusive, quando passa a ser usada em animais ela aumentou a replicação [do coronavírus]. Também testaram em células-alvo, células do trato respiratório, e também não funcionou. Foi testado em macacos, camundongos, em todos os estágios da doença. Não foi capaz de reduzir a carga viral”.
Quem também se manifestou contra a nova orientação do Ministério da Saúde foi Alexandre Naime, da Sociedade Brasileira de Infectologia: “Logo no começo do documento tem um ‘considerando que não tem evidência científica para o tratamento específico da cloroquina’. Esse ‘considerando que não tem evidência científica’ já mostra que não tem sentido nenhum usar nenhum tipo de medicação. Ele é um documento político. Só para dizer que tem um protocolo. E coloca bem claro que fica a critério do médico e do paciente decidir. É basicamente um documento político que não acrescenta em nada”, pontuou.
Para o infectologista Jean Gorinchteyn, do hospital Emílio Ribas, em São Paulo, “todo médico segue ou deveria seguir os estudos científicos na hora de dar um medicamento. Esses estudos mostram que usar ou não a cloroquina, neste momento, não tem respaldo científico. Foram feitos vários trabalhos de pesquisa em várias partes do mundo e nenhum trouxe resultado promissor. Como medicações podem causar efeitos colaterais, há um risco no uso deste medicamento.”
O também infectologista Wladimir Queiroz, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), avalia que “a adoção da cloroquina é uma decisão política tomada por pessoas que não são médicas. Sou médico desde a época em que surgiram as primeiras infecções por HIV e naquele momento muitas pessoas falavam o que vinha à cabeça. Usavam um medicamento que deu certo em um paciente e já achavam que daria certo para todos. Mas quem está lidando com os pacientes de Covid-19 sabe que tem pessoas que vão muito bem contra a doença e outras que vão muito mal, independente do medicamento. Atribuir [a cura da Covid-19] a uma droga tão antiga, cujo mecanismo de ação e efeito biológico são tão diferentes, não tem o menor sentido.”
Outro infectologista do Hospital das Clínicas, Álvaro Costa, foi categórico ao condenar o uso da cloroquina: “A gente tem um país muito heterogêneo. Então, abre a possibilidade de os profissionais médicos usarem, apesar de a gente falar inúmeras vezes da falta de evidências, mas abre a possibilidade de uma expansão do uso da medicação, mesmo com todos os poréns já colocados. Quando saíram os primeiros estudos houve muito furor, mas à medida que ampliamos os estudos, no contexto da ausência de evidências, a gente passa a olhar com muita cautela para essas medidas [do governo federal]”.