Curta nossa página


Entrevista/Preto Zezé

Favela já vive isolada; precisa é de uma saída

Publicado

Autor/Imagem:
João Vitor Santos - IHU/Via Diálogos do Sul

Uma das marcas mais negativas do Brasil são as desigualdades, e diante da pandemia da covid-19 novas faces dessas desigualdades se manifestam. A doença entra no país pelas classes média e alta, mas é na periferia que morrem mais pessoas. Não obstante, a vida na favela definha diante do isolamento social que é necessário para frear o contágio. Sem nenhum apoio, o morador dessas zonas, que já vive com tão pouco, está entre os riscos da contaminação e a emergência de trazer comida para a mesa.

“Estamos num mesmo mar, numa mesma tempestade, mas nem todo mundo está no mesmo barco. Alguns estão de jet ski, outros de lancha e muitos sequer com uma boia”, observa Preto Zezé, um dos articuladores da Central Única das Favelas, a Cufa. O grupo, que já vinha atuando nas periferias brasileiras, diante desse cenário de desespero teve de mudar o foco. “São situações emergenciais, é um naufrágio e nós estamos levando boias para que as pessoas não morram afogadas”, completa.

O IHU buscou esse contato com Preto Zezé via WhatsApp para tentar compreender como a Cufa tem se articulado. Bem ou mal, enquanto a comida demora a chegar via ações estatais e ações do governo geram filas e mais desespero na porta de bancos, a ONG de Preto Zezé consegue recolher, separar e distribuir alimentos, além de apoio psicológico e financeiro.

“O que nós estamos fazendo é tomar consciência de que estamos agora construindo o futuro. Ninguém sabe o que será da favela no pós-covid. O que nós sabemos agora é que já começamos a ter problemas seríssimos”, destaca. Por isso, a Cufa quer ser rápida nas ações, ligando quem precisa com quem quer ajudar. “A sociedade civil e empresas têm construído uma coisa inédita no Brasil nesse momento de polarização e de divisão do país: é uma agenda em torno do combate à desigualdade e de ajuda emergencial”, reforça.

Ao longo de toda a entrevista, Preto Zezé detalha como está sendo o trabalho, os desafios, mas principalmente relata como é viver em tempos de pandemia na favela. “A pessoa não tem como ficar em casa. Na busca pelas necessidades básicas, sai para a rua, correndo o risco de pegar o vírus, pois a outra opção é ficar em casa com fome e sem dinheiro”, relata. Aliás, essa experiência de atuação desde dentro da favela é que traz um diferencial para a Cufa, que vê na hora o que é de fato mais emergente na comunidade.

“Por isso, defendo que se deveria apostar em frentes de emergência nas favelas. A Cufa montou uma logística em mais de cinco mil favelas, com mais de 100 mil voluntários. O Estado deveria botar grana nisso, fortalecer isso, linkar isso a políticas de saúde, de prevenção e de monitoramento e tudo isso lá na ponta”, sugere.

No entanto, numa leitura mais apressada, pode-se concluir que pelas vias do chamado terceiro setor, de ONGs, voluntários e empresas privadas, Preto Zezé defende uma redução do Estado. Afinal, esse terceiro setor se mostra mais conectado com a realidade e com maior capacidade de resposta rápida. Mas não é isso que defende. Para ele, a experiência da pandemia tem de servir para que pensemos numa outra agenda política. “É necessário agora, com essa crise, ver que temos a possibilidade de reconstruir a luta social que, ao invés de ser pautada pela política, pode ser pautada por esses grupos que estão inseridos nesses ambientes de periferia”, aponta. E enfatiza, indicando que o momento “é propício para fazer essa virada de página, a retomada dessa agenda”.

Para a Cufa, há relação com apoio não só de parceiros, mas do próprio Estado. É por isso que defendem também a ideia de renda básica universal, por exemplo. “Defendemos que a renda básica emergencial que está aí agora seja permanente, porque ela começa a apontar perspectiva de organização na cabeça das pessoas. Se a gente tira a perspectiva delas, se a gente não atender e não abrir possibilidade, não acredito que pais e mães vão ficar olhando seus filhos chorarem de fome, morrerem de fome, enquanto olham para prateleiras lotadas de comida em outros lugares. Aí é o caos e o colapso, é anomalia, não gosto nem de pensar nisso”, reflete.

Preto Zezé é presidente global da Central Única das Favelas – Cufa. A Cufa é uma organização brasileira reconhecida nacional e internacionalmente nos âmbitos político, social, esportivo e cultural. Foi criada há 20 anos, a partir da união entre jovens de várias favelas, principalmente negros, que buscavam espaços para se expressarem ao seu modo.

Tem o rapper MV Bill como um de seus fundadores, além de Nega Gizza, uma forte referência feminina no mundo do rap, e o produtor Celso Athayde, hoje coordenador geral. Durante a pandemia da covid-19, a Cufa tem se destacado em ações de apoio que levam alimentos, materiais de higiene e orientações sobre prevenção da doença para cinco mil favelas nas 26 capitais dos estados, além do Distrito Federal e outras cerca de 440 cidades do interior do Brasil. Também tem se mobilizado em frentes para geração de renda para pessoas que ficam sem trabalho durante esse período de isolamento social.

Confira a entrevista:

Quais os maiores desafios que a pandemia causada pela covid-19 tem gerado para os moradores das favelas?
A covid-19, antes de um problema de saúde, chegou como um problema econômico, porque 50% das pessoas, diante do quadro atual do número de desemprego, trabalham como autônomas. E tudo isso foi dizimado, desde o camarada que vendia churrasco até o da lojinha de roupa, todo esse tipo de trabalho foi prejudicado. Isso foi um impacto muito violento nas famílias.

Uma outra questão é que, pela própria infraestrutura das favelas, uma parte delas tem que segurar a quarentena de outros, assegurar o isolamento social de outros. Isso porque vivem nas favelas muitas pessoas que estão em funções essenciais, pessoas que são a massa hospitalar, os trabalhadores de postos de gasolina, de supermercado. Essas pessoas que estão na linha de frente e que, comparando com aqueles trabalhadores que moram em bairros de classes ricas, têm uma cota de sacrifícios muito maior. Ou seja, estamos num mesmo mar, numa mesma tempestade, mas nem todo mundo está no mesmo barco. Alguns estão de jet ski, outros de lancha e muitos sequer com uma boia.

Como as comunidades têm lidado com o isolamento social?
Antes de falar em isolamento social na favela, é preciso entender que socialmente as favelas já são isoladas de vários direitos. Além disso, como já falei, parte da favela é que está mantendo a possibilidade de o isolamento funcionar através dos serviços essenciais. A outra parte é uma parcela que tem muitas dificuldades para se manter, dificuldades objetivas mesmo, devido à desigualdade que se vive no país. Só para se ter ideia, estou aqui em Fortaleza e um dos bairros ricos daqui da cidade tem um número de casos de covid-19 muito grande. No entanto, mesmo esses bairros mais nobres tendo o maior número de casos, o maior número de óbitos é nas favelas. Então, essa forma de se defender e enfrentar a doença é desigual em todos os aspectos possíveis.

Além disso, temos a dificuldade com relação a ‘comunicação trocada’. Prefeitos e governadores vão para um lado, o governo federal vai para outro e isso gera uma confusão enorme. A comunicação é muito ruim, falta clareza sobre o que se entende por como é fazer um isolamento social, além dos cuidados na ponta, da prevenção do sistema de saúde.

E, claro, toda estrutura de saúde está muito voltada e focada só em UTI, e essa saúde mais básica, da ponta, de programas de estratégia como de saúde de família, é deixada de lado. Poderiam montar postos avançados nos bairros para medir pressão, medir temperatura, distribuir gratuitamente oxímetros para uso; são cuidados que poderiam ser feitos na ponta e que não estão sendo feitos.

Por fim, há ainda a própria estrutura de renda e alimentação, pois sem isso a pessoa não tem como ficar em casa. Na busca pelas necessidades básicas, sai para a rua, correndo o risco de pegar o vírus, pois a outra opção é ficar em casa com fome e sem dinheiro.

Como avalia as ações do Estado em termos de assistência a pessoas que vivem nas favelas?
O Estado, pelo menos o que está se vendo, age somente pela responsabilidade de governadores e prefeitos. A estrutura estatal é muito burocrática e muito lenta, pesada. O Governo do Estado está fazendo o que pode. Aqui no Ceará, por exemplo, o governador liberou gás, isentou contas de luz, está reduzindo custos e carga tributária, ação de transferência de renda antecipada, prefeitura e governo estão montando hospitais de campanha. Mas, nessa hora, os governos, em todas as esferas, deveriam ter uma ação, já que é um desespero e uma disputa desigual, pois tem que comprar respirador no mercado mundial, a estrutura que já está difícil no sistema de saúde, etc.

Por isso, defendo que se deveria apostar em frentes de emergência nas favelas. A Cufa montou uma logística em mais de cinco mil favelas, com mais de 100 mil voluntários. O Estado deveria botar grana nisso, fortalecer isso, linkar isso a políticas de saúde, de prevenção e de monitoramento e tudo isso lá na ponta. Poderia haver uma frente de classificação e outra de monitoramento dos doentes, ampliar esses serviços que estão dando trabalho lá na ponta, nas favelas, e fortalecer essa comunicação que esses grupos que atuam nas periferias criam. O Estado está deixando esse vácuo muito grande para instalar desencontros. E isso tem sido prejudicial, inclusive, para as coisas importantes, boas e estratégicas que municípios e estados têm feito.

De que forma o poder público e o Estado têm entrado na favela nesse período de pandemia?
O Estado deveria fazer isso que destaquei, montar postos avançados. As escolas estão todas vazias, então deveriam estruturar esses espaços com equipamentos para medir o oxigênio das pessoas, para medir a temperatura, proteger idosos, ampliar e preparar os grupos de saúde da família para cuidar mais dos idosos, preparar cuidadores, ver como é que se pode cuidar daquelas pessoas de grupos de risco, dos que precisam ficar só em casa. Tudo isso porque, hoje em dia, as estruturas de saúde estão com um risco enorme e muitas pessoas estão com medo de ir [a postos ou unidades básicas de saúde] e estão ficando em casa doentes, com outros problemas de saúde. Outra parte, inclusive, está com medo de falar que está com Covid-19 e ser discriminado em seguida.

E tem uma galera que realmente está negligenciando as informações dos riscos e isso tem a ver com a estrutura de Estado, porque falta informação. O Estado deveria dar atenção a qualquer iniciativa que esteja preocupada em levar informações para diminuir a curva de contágios, a demanda e o impacto no sistema de saúde.

De que forma a Cufa vem atuando junto das periferias brasileiras?
A Cufa já havia montado uma rede, conectando cinco mil favelas, contando com apoio de mais de 100 mil voluntários. Nós suspendemos as ações de imediato, quando chegaram as informações sobre a doença, e mudamos o foco. Num primeiro momento lançamos um documento com 14 propostas para engajamento empresarial e do poder público e da sociedade civil para reduzir os danos, os impactos da Covid-19 nas favelas, que seriam as mais afetadas. E, dentro dessas favelas, uma atenção às mulheres. Por isso lançamos uma campanha de divulgação e arrecadação de alimentos e também lançamos um programa chamado Mães da Favela, que é um programa de transferência de renda.

Basicamente, as ações da Cufa têm sido em três eixos, fora as ações particulares que temos feito em cada lugar. Há centrais de logísticas que arrecadam, distribuem e fazem uma entrega localizada em escala para quem mais precisa, numa interface com grandes empresas que querem doar. Organizamos um sistema e asseguramos para que as doações cheguem realmente na ponta a pessoas que precisam urgentemente e não sabem a quem procurar. Temos atuado também no sentido de arrecadar recursos financeiros, porque não adianta chegarem toneladas de alimentos e não ter como levar, não ter como entregar, não ter como botar para funcionar essa estrutura. E nessas centrais de distribuição funciona essa parte de logística que aciona redes de atuação do território, uma central de comunicação para divulgar informações, fazer campanha e combater fake news. É também uma central de estratégia e relação institucional, fechando assim esses três eixos. Estamos no Brasil inteiro, nas 26 capitais e no Distrito Federal e em cerca de 440 cidades.

É importante outros tipos de assistência porque são situações emergenciais, é um naufrágio e nós estamos levando boias para que as pessoas não morram afogadas. Mas é necessário que o Estado entre com outras ações políticas. Estamos vendo o setor empresarial num engajamento tremendo, estamos até defendendo que setores empresariais que estão participando com doações tenham isenção de algumas questões tributárias, para incentivar ainda mais a participação de empresas em campanhas de doação. E a ideia é que possamos, agora, apresentar ao Estado essa tecnologia social para que possamos ampliar e incluir outras políticas públicas nesse sistema de ações.

A Cufa tem apostado, também, na centralidade das ‘mães da favela’. Por quê?
Se a favela é a mais atingida, mulheres da favela são as mais atingidas dentro desse contexto e as mães solteiras são as que mais sofrerão. Hoje, por exemplo, 85% das mães que têm o filho em casa não conseguem sair na rua para batalhar renda, para trazer comida para dentro de casa; 87% já não vão ter como honrar as contas fixas no fim do mês. Ao mesmo tempo, reside nelas a capacidade de reação, porque quando chega essa transferência de renda, é ela que é capaz de fazer a melhor gestão.

Temos visto isso no projeto Mães da Favela, que é um projeto nosso e do PicPay, que entra com acesso digital e faz o monitoramento da transferência de renda digital sem fila e sem aglomeração. A resposta dessas mulheres tem sido bem importante porque, além de serem capazes de fazer uma gestão melhor da economia, também se preocupam em fortalecer o comércio local, de cuidar de quem precisa. Na mão dessas mulheres, está também o poder de reação capaz de virar esse jogo, por isso o foco é nelas.

Como funciona a organização de vocês?
Paraisópolis é o reflexo do que está acontecendo em outras favelas do Brasil. Lá, montamos uma central de logística porque a Cufa, na verdade, está nesses lugares. Já estávamos nessas favelas, já vínhamos atuando há quase três décadas. Temos as centrais de logísticas, as redes de voluntários, iniciativas fazendo a interface entre as empresas e políticas públicas para esse território, desenvolvendo essas ações emergenciais, com foco na segurança alimentar, na proteção da saúde e na transferência de renda.

As pesquisas são realizadas pelo Instituto Data Favela, que é uma empresa que faz parte da Favela Holding [primeira holding que reúne empresas que atuam, ou planejam atuar, nas comunidades. Ao total são 10 empreendimentos feitos entre o holding e as empresas], criada pelo Celso Athayde em parceria com o Renato Meirelles, do Instituto Locomotiva. A Cufa usa essas pesquisas desses territórios para monitorar mês a mês como está sendo o impacto dentro das favelas brasileiras. As pesquisas são realizadas pelo nosso pessoal, via digital, com trabalhos em campo e através dessa rede que está presente no Brasil todo. Isso facilita que se tenha uma visão e acesso a territórios onde muitas vezes os institutos tradicionais de pesquisa não chegam.

De que forma a Cufa tem se articulado com os líderes das comunidades e qual a importância dessas figuras?
Essas lideranças já existem e a importância é que estão nos territórios, compreendem a dinâmica do lugar. Além disso, têm uma capacidade enorme e uma dinâmica para poder enfrentar e desenrolar como articuladores dessas ações. Também sabem como trabalhar nesses territórios, como se constroem e ampliam parcerias, como se enfrenta a dificuldade transformando em oportunidade, como se constrói agenda positiva nesses lugares. Assim, quando atuamos em rede, criamos um grande ecossistema de várias iniciativas e de trocas de experiências nesses tantos lugares.

A Cufa atua em favelas, indiferente de facções, de milícias, atende a todos os territórios que têm todo o tipo de formação. As ações da Cufa têm sido no sentido de pautar uma agenda nesses territórios. Atualmente, consiste numa agenda de inclusão, de saúde. E essa agenda emergencial é uma agenda que, hoje, não tem oposição de ninguém. Mas nós já vínhamos atuando nesses territórios antes e não tínhamos nenhum problema.

Como avalia a participação da sociedade civil e de empresas nas doações e apoio neste momento de dificuldades decorrentes da pandemia?
A sociedade civil e empresas têm construído uma coisa inédita no Brasil nesse momento de polarização e de divisão do país: é uma agenda em torno do combate à desigualdade e de ajuda emergencial, é um comprometimento que revela que ao mesmo tempo em que há grupos empresariais que desempregam e pensam em grandes lucros, há outros, como Pão de Açúcar, JBS, Magazine Luiza, que estão indo no caminho contrário. Eles estão sendo parceiríssimos de várias ações que estamos fazendo.

Com tudo isso, acho que a gente vai ter, como futuro no Brasil, o desafio de construir uma agenda pública que não seja pautada pelo mundo político aparelhado por partidos. É essa parceria que tem de continuar. Isso porque, diante das desigualdades que se revelaram agora, é necessário que se continue esse movimento cívico organizado para pautar essa agenda de combate à desigualdade.

Aliás, já estamos vendo que tivemos grandes vitórias porque já temos a renda básica emergencial, que foi um movimento de fora para dentro, inclusive com a ampliação desses recursos, porque o governo federal queria conceder só 200 reais e o parlamento aumentou para 600 reais. Temos também um debate no Senado sobre a permanência dessa renda básica, que é uma reivindicação nossa também. Já no Supremo Tribunal Federal – STF, vemos que tem regulamentado os trabalhos essenciais de diaristas e empregadas domésticas, colocando a Covid-19 como uma doença de trabalho também. Ou seja, o patrão vai ter que cuidar, vai ter que ter plano de saúde, vai ter que ter emergência, vai ter que ter prioridade. E isso é legal, importante para fomentar essa nova plataforma e uma agenda de política em comum para o combate à desigualdade. Acho que isso é o mais positivo desse momento.

Pela sua experiência, como os moradores da favela têm visto e avaliado o governo de Jair Bolsonaro?
Há uma rejeição, óbvio, e isso varia de lugar para lugar, e também a forma como é dirigida essa rejeição. Mas tem um vácuo aí, que acho que é onde se instala a rejeição. É essa questão da economia, de desemprego, esperança por dinheiro, a demora na ajuda emergencial – são 13,6 milhões que não receberam o benefício de auxílio emergencial -, além da questão do próprio caos na saúde, o sistema de saúde que já está estrangulado, junta tudo isso e se cria um caldeirão. Há ainda os discursos somente da economia, se tem um apego forte de que as pessoas querem trabalhar, querem dinheiro, querem pagar suas contas, comprar comida, comprar remédio. Mas ao mesmo tempo há um desgaste muito grande porque os governadores e prefeituras vão num sentido e o governo federal, noutro. Isso tudo gera ainda uma divisão muito grande entre as pessoas.

Como projeta a vida na favela nos próximos meses?
Acho que seria irresponsável pensar os próximos meses já que ninguém está conseguindo pensar nada. Acho que vivemos um elemento novo e não temos nem retrovisor para analisar o passado como foi e nem se tem como pensar para a frente. O que nós estamos fazendo é tomar consciência de que estamos agora construindo o futuro. Ninguém sabe o que será da favela no pós-covid. O que nós sabemos agora é que já começamos a ter problemas seríssimos, vamos ter que recuperar economia dos pequenos empreendedores locais, vamos ter que investir na educação das crianças que agora estão em casa, vamos ter que cuidar da questão psicológica especialmente de mães que estão com os filhos em casa. Tem ainda a questão da violência doméstica, tendo essa mulher que se virar e ainda segurar uma onda. Nas favelas, 47% dessas mães são chefes de família. Ou seja, já temos agora uma demanda enorme para atendermos.

Por isso defendemos que a renda básica emergencial que está aí agora seja permanente, porque ela começa a apontar perspectiva de organização na cabeça das pessoas. Se a gente tira a perspectiva delas, se a gente não atender e não abrir possibilidade, não acredito que pais e mães vão ficar olhando seus filhos chorarem de fome, morrerem de fome, enquanto olham para prateleiras lotadas de comida em outros lugares. Aí é o caos e o colapso, é anomalia, não gosto nem de pensar nisso.

Apesar de toda a dificuldade e sofrimento, acredita que as lutas dos moradores das favelas saem fortalecidas ou ainda mais fragilizadas por essa pandemia?
Há uma questão a ser discutida, não somente do ponto de vista do movimento de moradores de favela, mas para os movimentos sociais como um todo. Durante os governos progressistas nós tivemos vários avanços na área econômica e na área social, mas tivemos um prejuízo enorme do ponto de vista do engajamento e da mobilização, porque todos os movimentos, na sua grande maioria, ficaram vinculados a grupos partidários e políticos que compuseram o poder na estrutura de Estado. Esses movimentos não conseguiram mais ter interlocução com esses setores, com esses territórios das favelas, porque tudo ficou resumido à agenda eleitoral, à agenda das convivências dos grupos políticos, e a gente não conseguiu construir isso.

É necessário agora, com essa crise, ver que temos a possibilidade de reconstruir a luta social que, ao invés de ser pautada pela política, pode ser pautada por esses grupos que estão inseridos nesses ambientes de periferia. É essa agenda que está se impondo. Então, o momento é propício para fazer essa virada de página, a retomada dessa agenda. Porque quem a gente vê trabalhando nas favelas? Tem os grupos das igrejas e alguns grupos isolados sem o apoio nem do Estado. Então, é preciso que a gente refaça essa organização, aumente a interlocução com o setor privado, que consiga parceiros, mas que se tenha claro que o protagonismo dessa agenda, a responsabilidade dela e o engajamento para que ela seja implementada são nossos e a política tem que servir a essa agenda, aos nossos interesses e não o contrário.

A favela pode ser considerada uma bela iniciativa de convivência social e de fraternidade?
A gente aqui é Central Única das Favelas, lutamos para que as favelas acabem, sejam extintas, virem peça de museu. Mas, enquanto as favelas não acabam, nós estamos lutando para que elas sejam um lugar melhor para se viver, para que a gente tenha uma agenda positiva nesses territórios, para a gente consiga fortalecer e dar potência a esses lugares, para ir fortalecendo e formando lideranças, e levando e pautando nossa agenda de interesses junto ao asfalto, ao poder público. É preciso que a agenda da favela não seja somente dela mesma, para que não fique ela mesma somente reclamando e xingando, mas que a gente consiga organizar e conseguir resultados práticos.

A favela, nesse sentido da coletividade, tem uma fraternidade muito boa, mas é preciso ir além. É preciso discutir que a solução dos problemas das favelas está no asfalto. As questões que implicam as dificuldades na favela são questões de toda a sociedade, porque se não houver desenvolvimento para a favela não vai haver para ninguém. Ao contrário do olhar que sempre se tem quando se fala nela, associado a tragédia, problema e dificuldade, podemos observar que as favelas produziram, dentro da pandemia, 117 milhões de reais. É o PIB do Uruguai, por exemplo.

Então, assim, você não está falando somente de um lugar de coisas ruins, de tragédias, está falando de alguém que produz riqueza, de gente trabalhadora e que gera riqueza no país, tem poder de consumo. Como é que se reverte isso para que esse Brasil oficial também se encontre nesse Brasil invisível? Não podemos considerar nação se a favela não faz parte dessa sociedade. Se construir dois mundos separados, com certeza vai ter aí um conflito. A oportunidade agora é construirmos essa agenda de combate à desigualdade e realmente se construir como nação, porque até agora o que temos visto é um amontoado de traumas, de desigualdades e de injustiças sociais que precisam ser superadas para a gente se considerar uma nação realmente evoluída.

Deseja acrescentar algo?
Só lembrar que quem quer conhecer mais do trabalho pode acessar o site Cufa; estamos no país inteiro com várias iniciativas. Tem também o projeto Mães da Favela. É só acessar o site e lá tem todas as informações. Estamos aqui, junto, para o que der e vier.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.