Desgoverno
Lives de recados escondem medo de Jair Bolsonaro
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emDas lembranças de menino e adolescente, uma das menos nobres eram as peladas nos campos de várzea do subúrbio carioca. Eram arriscadas, pois, quando saía do bairro, acompanhado da molecada da mesma faixa etária, sabia que não podia vencer sob pena do enfrentamento, da correria para o mato e, com muita frequência, dos socos e pontapés. Não era comum, mas chegaram a aparecer algumas garruchas em mãos destreinadas que nos faziam jurar que nunca mais jogaríamos fora de nosso reduto. Que nada. No dia ou na semana seguintes lá estávamos correndo novamente dos adversários.
Esse tipo de pelada devia não ser nobre, mas, lembro-me bem, minha reação jamais foi de medo. Corria porque a alternativa era aquela. Quando pego, apanhava sem demonstrar pavor, embora as dores fossem pavorosas. Nada me orgulha mais do que reviver tempos passados e ter a certeza de que não há arrependimentos. Será que precisava todo esse nariz de cera para chegar onde quero no texto? Estou certo de que sim. Meu DNA é transparente e, por essa razão, não me permito respeitar como pessoa quem age diferente, quem tem medo de ter medo. Devo respeito – e isso é inquestionável – ao cargo ou função exercida.
Por exemplo, o presidente da República. Por mais que não o admire e o rejeite politicamente, tenho obrigação de respeitá-lo como eleito pela maioria da população. Entretanto, isso não quer dizer que tenha de fazer coro às suas sandices, aceitar seus posicionamentos arcaicos, bajulá-lo apenas para agradá-lo ou entender como lógica sua superioridade temporária. Indo um pouco adiante, nada me impede de, mesmo engolindo seus quatro anos de mandato, abominar a criatura travestida de governante.
Muito mais do que preparo e postura, falta ao dirigente máximo do país discernimento para entender que ninguém governa para grupos ou segmentos. Ao se eleger, ele jurou lealdade à Constituição e prometeu ser o mandatário do Brasil, isto é dos brasileiros, fossem eles seguidores ou adversários ideológicos. Dois anos após a posse como 38º presidente da República Federativa do Brasil, não é o que se observa. Estamos muito além do que o mais pessimista do eleitor imaginou. Sempre amedrontado quando aparece em público, Bolsonaro passa uma imagem de infelicidade, de incredulidade e até de despotismo. Não lembra nem de longe qualquer dos generais sisudos, taciturnos e autoritários que conhecemos no período de chumbo. Eles eram mais gentis. E o público ao qual me refiro é o seu público, já que os de corrente diferente têm de ficar distante da democracia bolsonarista.
O advento das lives caiu como uma luva para o presidente. Nelas, ele fala o que quer – quando tem algo para falar -, não é interrompido ou questionado, está rodeado de bajuladores com polpudos contracheques e consegue, com facilidade, exercitar seu autoritarismo e, com alguma dificuldade, esconder o nervosismo da ausência de pauta, situação que normalmente só é captada pelos que conseguem entender o intérprete de libras. Não sei quem é o criador dessa ferramenta denominada live. Todavia, tenho certeza de que atende plenamente aos verdadeiros artistas, que mostram suas caras como elas realmente são.
Tecnicamente esse mecanismo é de nenhuma serventia para quem adora mandar recados. Eles só chegam àqueles que querem recebê-los ou que têm tempo para acompanhá-los nos dias e horários combinados. E o Brasil passou a ser governado por recados via lives, transmitidas para a claque bolsonarista, acostumada a atender a qualquer pedido da cúpula, inclusive para aplaudir entusiasmadamente suspiros de defuntos. São esses mesmos que, desprovidos de absoluto bom senso e de raciocínio lógico, optam pelo despautério de comparar Bolsonaro a Donald Trump.
Meu Deus! Até mesmo nas loucuras o ex-todo poderoso norte-americano é bem resolvido. Apesar de discordar do seu perfil, dos seus gestos e ações e do horroroso cabelo, inegavelmente Trump é um empresário bem sucedido. Mesmo que sua exaustiva luta para não perder o osso possa ter como mote a sonegação e o medo da prisão, como esconder que ele é realizador, um magnata, um midas e, ainda que tenha usufruído muito, deu algum retorno para os Estados Unidos. Se não recolhendo devidamente impostos, pelo menos empregando centenas ou milhares de pessoas, correligionárias ou não.
E o que fez Bolsonaro? Convivi e convivo com homens e mulheres que, com muita inteligência e perseverança, alcançaram a Academia Militar de Agulhas Negras (Aman) e de lá saíram coronéis e generais. Com todo respeito ao presidente da República, o homem Jair Bolsonaro não passou de tenente (com soldo de capitão). Como atleta também deixou a desejar. E o que dizer da atuação parlamentar? Além dos discursos homofóbicos e misóginos, não tenho informação sobre algum projeto apresentado por ele e que tenha mudado a vida de qualquer brasileiro, mesmo dos que o seguem até a morte. Uma pena para o Brasil.
*Wenceslau Araújo é jornalista