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Os ingênuos

Só quem crê em duende descrê de mais erros

Publicado

Autor/Imagem:
Celso Lungaretti/Via Grito Cidadão

Só ingênuos não percebem que há muitos planos e tramas rolando nos bastidores e, sem os conhecermos, qualquer análise que façamos sobre a decisão do ministro do STF Edson Fachin, de cancelar condenações e tornar novamente elegível o ex-presidente Lula, será falível.

A meu ver, Mario Sergio Conti foi quem melhor definiu quais eram, partindo da constatação de que o governo de Jair Bolsonaro se tornava a cada dia mais insustentável, os possíveis cenários futuros antes de Fachin anunciar sua polêmica decisão:

1. uma explosão social, “algo entre a campanha das Diretas e o levante de 2013”, “uma revolta que sacuda a nação e o poder” (tendo como provável desfecho a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte);

2. a conciliação, “um costume nacional, que serve de recurso para as autoridades civis, militares e eclesiásticas de todos os séculos”, sendo que, “nesse cenário, governadores, Congresso e o Supremo, mancomunados com o empresariado e o Exército, mandariam Bolsonaro passear” (tendo como provável desfecho a formação de um Governo de Salvação Nacional, que “organizaria a vacinação coletiva e daria um primeiro trato na debacle econômica”); e

3. ficar tudo como está, com a continuidade da pasmaceira e, portanto, “o aprofundamento da degradação e do apodrecimento” (tendo como provável desfecho “um golpe ou uma saraivada de golpes”)

Embora a perspectiva aberta para uma vitória de Lula na eleição presidencial de 2022 possa eventualmente gerar “um golpe ou uma saraivada de golpes”, a hipótese se choca com o estado calamitoso da economia brasileira e as consequências (há mais ainda por virem) da longa pandemia.

Para que o morticínio não se torne apocalíptico, nosso país vai precisar desesperadamente fazer as pazes com o resto do mundo, que hoje o vê como um pária e “um laboratório de mutações [do vírus] a céu aberto”, como apropriadamente o definiu Ruy Castro. Golpes e outros governos de extrema-direita só nos afundariam de vez.

A primeira hipótese também pode ser descartada, pois tudo indica que os poderosos já estejam se movimentando para evitar, exatamente, que cheguemos à explosão social.

Resta a conciliação, e não há ninguém melhor para encabeçá-la do que esse Lula que, libertado em novembro de 2019 da sua prisão em Curitiba, vem há 16 meses desestimulando as iniciativas para o afastamento imediato do presidente indiscutivelmente genocida e possivelmente destituído de sanidade mental para o exercício do cargo.

[Afora haver-se oposto à iniciativa dos jovens manifestantes que, em maio/junho de 2020, conseguiram reconquistar as ruas em São Paulo, expulsando as turbas ultradireitistas e fazendo Bolsonaro desistir do autogolpe.]

Como não acredito em duendes nem considero plausível que alguns ministros do Supremo, tão pusilânimes quando tomaram aquela famosa decisão tremendo de paúra por causa de um blefe da caserna, tenham se tornado valentes da noite para o dia, só posso atribuir a bomba arrasa-quarteirão do Fachin ao fato de o sistema (ou, pelo menos, parte dele) ter-lhe garantido respaldo e segurança.

Seria, exatamente, a cartada da conciliação, que convém acima de tudo ao poder econômico, o dominante, cujos prejuízos são grandes e crescentes sob a absoluta imprevisibilidade em que vive o Brasil sob Bolsonaro, com bilhões de dólares sendo perdidos em função das linhas de ação disparatadas que fanáticos ditam, principalmente nas relações exteriores e na preservação ambiental.

Com isto, tudo que sofremos sob o pior presidente brasileiro de todos os tempos terá sido inútil e praticamente voltaremos aonde estávamos em 2016, para mais um recomeço em bases falsas, já que a agonia do capitalismo, mesmo sem a exacerbação da barbárie que marcou a exaurida onda ultradireitista, seguirá seu curso.

Mas, como a vida é o valor mais sagrado e o trem fantasma do Bolsonaro já produziu a pior matança de brasileiros em toda a nossa história, devendo a contagem de cadáveres aumentar cada vez mais enquanto ele estiver na presidência da República, só nos restará apoiar a conciliação com Lula, mesmo que ele, como o marechal Pétain, volte personificando o oposto do que foi no passado, colocado agora a serviço das elites que tanto vituperava outrora. Paciência.

Só não podemos errar de novo, deixando de cumprir o nosso dever de reerguer a esquerda, resgatando a combatividade perdida e preparando-a para travar as lutas sociais que são sua razão de ser.

O reformismo, a conciliação de classe e a fixação obsessiva na via eleitoral quase fez a esquerda brasileira desaparecer. Tão logo seja retirado o bode da sala, temos de repensá-la, depurá-la e reconstruí-la, mas agora cuidando de evitar os erros que tantas vezes inutilizaram nossos abnegados esforços.

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