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Retrato da negação

Pandemia põe Brasil no posto de câncer mundial

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

Sinônimo de inoperância no trato da coisa pública, inércia na governabilidade, incapacidade na busca soluções rápidas para os numerosos problemas nacionais e, sobretudo de lentidão e equívocos na condução da assustadora pandemia, o governo federal parece não se incomodar mais com a dor das famílias, com o odor dos quase 300 mil cadáveres já contabilizados, muito menos com a transformação de sepultamentos em série no novo cartão postal do Brasil. Decorrência direta da letargia oficial, do uso de medicamentos ineficazes, do estímulo às aglomerações e ao abandono da máscara facial e, principalmente, do terrorismo contra medidas de restrições dos governadores, a escalada do vírus é retrato da caminhada negacionista.

É resultado do ódio. É o que temos hoje para mostrar ao mundo. De letalidade questionada, ignorada e sempre negada pelo presidente da República e apoiadores, a Covid-19, há um ano entre nós, não gerou apenas 11.693.838 infectados e 284.775 mortos. Isolado e odiado por muitos, o país do faz de conta é execrado internacionalmente. Antes admirados pelo bom humor, pelo futebol alegre, pelo samba e pelas belas mulheres, hoje somos dignos de pena. A maioria nos trata como cancerosos. A silenciosa doença teve uma origem, um epicentro e atingiu o planeta. Entretanto, ao longo do tempo, enquanto negávamos a crise, o mundo se preparou contra o agravamento da pandemia.

Somente o Brasil continuou – e continua – tratando o vírus como uma gripezinha sem consequência. Por conta da cloroquina e das tubaínas, viramos um carcinoma metastático. Ainda que saibamos a correta denominação do nosso câncer, melhor deixar que o registro seja feito pela história. Os livros, o Wikipedia e os que restarem um dia contarão, por exemplo, que grande parte dos infectados, consequentemente culpados pela saturação dos hospitais, negou o vírus até ser encontrado por ele em uma live presidencial, uma festinha clandestina ou, quem sabe, durante encontro “casual” no jardim do Palácio da Alvorada. Pena que, se um desses morreu, não deve ter morrido sozinho. Levou um pai, uma mãe, filhos ou irmãos que queriam viver.

Tudo que estamos vivendo é a prova de que, em qualquer época ou lugar do mundo, a justiça divina tarda, mas não falha. Ainda que tardiamente, começa a se materializar na sociedade brasileira a urgente necessidade de o presidente da República esquecer a eleição de 2022 e começar a governar o Brasil de hoje, cujos números sociais, econômicos, sanitários e pandêmicos há muito deixaram de ser preocupantes. Na verdade, são assustadores dentro e fora do país. Paralelamente, está cada vez mais cristalizado que, se não optar por um cavalo de pau, Jair Bolsonaro dificilmente conseguirá recuperar a confiança e o litúrgico respeito de chefe de nação, condição sine qua non para um governante completar um mandato com um mínimo de dignidade.

Deliberadamente despreocupado com a Covid-19 e com a fome de milhares de brasileiros sem renda alguma, o capitão assiste, sem a esperada reação, o aumento dos rombos no casco do navio chamado de governo. Reações do tipo anunciar – ele mesmo – a compra de imunizantes suficientes para aliviar a tensão e o medo da população e, esquecendo a candidatura, liberar de uma vez o novo auxílio emergencial para resgatar a dignidade dos que não têm o que comer. Presidente, apesar do título de único mandatário do planeta com restrições viscerais à vacina, pense no país e lembre-se que, lamentavelmente, em breve realmente chegaremos a mais de 300 mil mortos por conta do vírus que Sua Excelência insiste em não reconhecer.

Não tenho recibo para defender ou acusar essa ou aquela autoridade, tampouco faço assessoria de imprensa para atuais ou ex-presidentes da República. Por isso, não estou impedido de fazer justiça a quem merece. A ligação umbilical com papito Donald Trump ainda não permitiu uma ligação pessoal e mais demorada de ajuda do presidente brasileiro ao colega norte-americano. De maneira enviesada, Luiz Inácio fez isso. Em declaração à CNN americana, sugeriu que Joe Biden doe parte do estoque excedente de vacinas contra a Covid-19 ao Brasil. Claro que a iniciativa lembra demagogia, política barata e oportunismo. Tudo isso e mais alguma coisa. No entanto, nunca, em tempo algum, alguém lhe negará a primazia do primeiro pedido de socorro oficial pela vida.

*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978

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