Pandemia
Genocídio é latente e generais fecham os olhos
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emEnquanto escrevo estas linhas, o Brasil já ultrapassou, em números oficiais, mais de 300 mil mortes. Em números reais, podemos já estar perto de 500 mil mortes. Não é coincidência que o governo liberal-fascista de Bolsonaro tenha cortado em 90% o orçamento do IBGE, inviabilizando na prática o próximo censo nacional. Nada melhor para esconder um genocídio do que ocultar os dados e desmontar o principal órgão de pesquisa demográfica do país.
A matança não terminou no Brasil e já se articula um grande pacto pelo “esquecimento nacional”. O Brasil, como diria Carlos Nelson Coutinho, é o país por excelência das transições pactuadas pelo alto. Ao proclamar o fim da escravidão, a elite dirigente decretou que não existia mais um problema racial no Brasil e que não tínhamos que remoer a história do escravismo, mas andar para frente – para materializar o esquecimento, uma quantidade infindável de documentos referentes à escravidão foi queimada.
O fim da ditadura do Estado Novo também expressou um grande pacto de conciliação e esquecimento nacional. Filinto Müller e companhia limitada nunca foram punidos pelas atrocidades cometidas contra comunistas, anarquistas, sindicalistas e outros tantos que, por um motivo ou outro, entraram em contradição com o varguismo.
Sobre a ditadura empresarial-militar de 1964 não preciso escrever. É fato conhecido que a “anistia ampla, geral e irrestrita” deixou intocados os torturadores, assassinos e criminosos da ditadura, assim como seus patrocinadores e patrões: nenhuma entidade patronal, burguês, monopólio de mídia, clero da alta burocracia da Igreja Católica ou conspirador dos Estados Unidos fantasiado de diplomata foi punido ou responsabilizado politicamente. Os militares não só saíram da ditadura pela porta da frente, como o Estado montado durante 1964-1985, ao menos nos seus órgãos de repressão, vigilância e controle, foi, no essencial, mantido. No lugar da caça aos comunistas, entrou a guerra ao crime, aos traficantes, às drogas etc. A máquina de moer gente e a guerra ao inimigo interno prosseguem.
Os militares não só seguiram tranquilos, dormindo o sono dos canalhas que não terão o mesmo destino de Mussolini, como passaram a confraternizar com amplos setores das esquerdas brasileiras. Não faltaram “filhotes da ditadura” passeando de mãos dadas com seus antigos inimigos – os que eles não conseguiram matar no passado, é claro. Delfim Netto, tzar econômico dos milicos, até hoje um orgulhoso de ter sua assinatura no AI-5, passou a circular serelepe nos espaços de esquerda como se nada tivesse acontecido. Paulo Maluf e semelhantes, como José Sarney e Antonio Carlos Magalhães, viraram “companheiros” e assim seguiu o grande pacto de esquecimento.
Agora, seguindo a tradição brasileira, vemos a costura de um novo pacto. De olho em 2022, babando para se aliar com quem até outro dia desses era chamado de “golpista”, vários nomes e setores da esquerda brasileira preparam terreno para o grande pacto de esquecimento do século XXI. A operação é simples no seu cinismo: transformar Bolsonaro numa entidade mítica, etérea, pairando sobre o ar. O fascista na presidência é o único, junto com sua família, responsável pelo genocídio em curso. Todo processo que levou à formação do governo liberal-fascista deve ser esquecido. Todos os atores políticos que se lambuzaram no governo – e não falo de leite condensado – devem ser acolhidos, e não pense em falar da responsabilidade da burguesia e da Embaixada de Washington na tragédia que abate nosso país.
A blindagem dos atores políticos responsáveis pelo genocídio guarda um lugar especial para o Partido Fardado: os militares, com mais de 7 mil cargos no governo, formando o governo mais militarizado da história brasileira, devem ser poupados de toda e qualquer responsabilidade pela matança em marcha. Como fazê-lo? É simples, operar abertamente um discurso “negacionista”. Nenhuma prova, mas muitas convicções – é a fórmula nacional do sucesso.
Vejamos alguns exemplos. Tarso Genro, ex-prefeito, governador, ministro e destacado quadro do PT, publicou em janeiro desse ano um artigo no Sul21 chamado “O culpado da mortandade não é o Exército. É Bolsonaro e seus políticos liberais e fascistas”. A lógica de argumento de Genro é curiosa. Deixando de lado as reflexões sobre cultura nacional, Trump, história dos EUA e afins, ele começa a debater a questão militar dizendo “penso que os militares do país – na sua ampla maioria – não querem que o país seja – no futuro – o que é o Rio de Janeiro hoje. Este é o meu ponto de partida”. Tarso se refere aos grupos milicianos do Rio de Janeiro. Que os militares, ciosos da hierarquia, não queiram uma estrutura miliciana nas Forças Armadas é um truísmo. Agora, que eles tenham alguma oposição ao projeto político expresso no Rio de Janeiro, lógica implícita no raciocínio de Tarso, não é demonstrado. Tarso apenas “pensa”.
Em seguida, comenta do golpe de 2016. Afirma que “pode ter tido a simpatia de uma parte das forças militares do país”, mas “não foi promovido por nenhuma delas”. Qual é o argumento para sustentar essa afirmação? Não temos. O argumento é uma projeção tático-estratégica que substitui a análise “mas não é correto colocar todas as instituições no mesmo saco”. Note o elemento retórico: o debate não é equalizar o papel de todas as instituições no impedimento, mas debater o papel dos militares. Seguimos.
Para Tarso Genro, responsabilizar em alguma medida os militares pelo genocídio em curso seria igual a obscurecer o conjunto de forças e atores políticos que deu vida ao bolsonarismo e não responder a essa pergunta central: “conseguiu sobreviver como governante de uma nação, sem qualquer respeito à moralidade republicana e se fez o projeto das suas classes dominantes, emprestando a sua face ao corpo político neoliberal do país?”. Tarso não se pergunta se a presença de mais de 7 mil militares no Governo, contando até pouco tempo com um general da ativa no ministério da Saúde (General Pazuello), tem relação com essa sobrevivência.
Tarso também não pergunta se cumpriram algum papel, na relação Governo-Congresso-STF, as ameaças abertas de militares, como as do General Heleno e do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva (que alguns querem esquecer, mas que sobrevoou com helicóptero da FAB a praça dos três poderes durante atos da extrema-direita pedindo fechamento do Congresso e STF). O fato do novo ministro da Defesa, General Braga Netto, ter sido ministro da Casa Civil – portanto, articulador político do governo – também não faz Genro questionar a relação dos militares com a “sobrevivência” de Bolsonaro (Braga Netto que, no Governo Temer, foi interventor no Rio de Janeiro durante o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes).
O ex-governador chega ao ponto de dizer que “com isso quero dizer que é errado, do ponto de vista político, e injusto, do ponto de vista histórico, identificar o Exército Brasileiro com a chacina sanitária”. Quais os argumentos para afirmar isso? Não há argumentos, mas considerações tático-estratégicas para o futuro. Não se trata de analisar as coisas como elas são, mas falar o que supostamente é necessário para ações futuras. O argumento todo de Tarso é esse:
“É errado, porque ajuda a extrema direita militar a se reorganizar na ativa e é errado porque Bolsonaro não representa nem de longe a moralidade média das FFAA – nem sua vocação política que é positivista conservadora, mas não fascista –; e é errado, porque reduz a responsabilidade objetiva e subjetiva dos militares da reserva, dos políticos do entorno de Bolsonaro, das religiões do dinheiro que lhe dão sustentação e do consórcio midiático-empresarial que o elegeu presidente e ainda lhe mantém no poder.”
Destaco duas coisas. Genro pega o lugar batido do caráter positivista das Forças Armadas brasileiras, dado real, e disso nega automaticamente, sem argumentar, qualquer processo de fascistização em curso. Em segundo lugar, novamente, diz que olhar para o Partido Fardado seria igual a desresponsabilizar os monopólios de mídia, o fundamentalismo religioso etc. Mas onde está a demonstração disso? Também não temos.
Por fim, Tarso conclui seu artigo com esse argumento. Peço uma leitura atenta:
“É errado, finalmente, porque é impossível construir República e Democracia no Brasil, sem que a maioria das Forças Armadas seja conquistada para um projeto de nação, cuja soberania estará depositada – em grande parte – nas mãos destas instituições, por dentro do Estado Democrático de Direito, tenha ele características de um Estado Social, seja ele um Estado de Direito meramente liberal-democrático. Estas considerações estão em polo totalmente oposto aos ‘puxões de orelhas’, que alguns militares da ativa e da reserva querem dar em jornalistas que denunciam os seus desmandos e a total falta de integridade deste governo, atacando diretamente a liberdade de crítica e de opinião.”
O “x” da questão é revelado. Tarso considera que o único meio de “construir” a “República e Democracia” (não estão construídas? Foram destruídas quando? Os mais de 7 mil militares no governo têm responsabilidade nessa destruição?) é conquistar a “maioria das Forças Armadas”. Esse imperativo tático e estratégico impele a negar a realidade e retirar deles qualquer responsabilidade. A compreensão do hoje é subordinada a um futuro possível.
O ex-governador da Bahia e senador Jacques Wagner, em artigo recente na revista Carta Capital , apresenta uma leitura parecida com seu colega de partido. No artigo de Wagner, intitulado “A orientação maior dos militares, creio eu, segue os princípios constitucionais”, ele diz “a recente demissão do ministro da Defesa, seguida de inédita troca dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, por não compactuarem com a sanha golpista do Planalto, diz muita coisa. Reforça o caráter de Estado que caracteriza essa instituição”.
Existe uma argumentação para mostrar que a troca de comandantes das Forças Armadas foi apenas ou principalmente por não compactuarem com a “sanha golpista” do presidente? Não. Wagner, seguindo um padrão de amplos setores das esquerdas, apenas repete a narrativa divulgada pelos monopólios de mídia. No dia da “maior crise militar da história”, fontes anônimas, segundo os monopólios de mídia, sopraram nos seus ouvidos que os militares são democratas, legalistas, constitucionalistas, moderados e que Bolsonaro é a única besta-fera do governo.
O ex-governador ainda tranquiliza os que estão apreensivos e garante que prevalece a orientação constitucional entre os militares: “é natural que o clima permanente de instabilidade do atual governo provoque muitas dúvidas sobre o engajamento dos militares. Por isso, tenho repetido, e os episódios recentes fortalecem, minha crença de que a orientação maior é com os princípios constitucionais”. O também ex-governador, ministro e presidenciável pelo PDT, Ciro Gomes, seguiu a mesma linha do petista na leitura da demissão de Azevedo e Silva.
A fala de Ciro cobre os militares de elogios e chama sua participação recorde na história no governo de “equívoco” (equívoco por que? O que levou ao erro?),
“E para o povo brasileiro: nós devemos receber essa mensagem com prudência e, acima de tudo, com muito respeito. É um primeiro grande sinal de que as Forças Armadas estão se desencantando com as loucuras que Bolsonaro tem praticado no Brasil. Também é sinal que eles querem retornar o melhor respeito que sempre deveriam ter merecido se não fora a aventura, o equívoco, de terem hoje quase 4 mil militares da ativa dentro do governo.”
Com um tom muito mais comedido e ponderado, Guilherme Boulos, no seu programa no YouTube (Café com Boulos), lançou um vídeo chamado “Vai ter golpe?” , em que analisa os intentos golpistas de Bolsonaro. Segundo Boulos, os militares, como Edson Pujol, deixaram Bolsonaro irritado com a defesa da Constituição, não pegando carona em intentos golpistas. Para Boulos, “aparentemente”, os militares não vão embarcar por agora nas ações de fechamento de regime desejadas pelo fascista na presidência. Como eu disse, mesmo com um tom mais ponderado e cuidadoso, Boulos segue a tendência de Ciro Gomes e Jacques Wagner de ver na demissão de Azevedo e Silva uma resistência ou negação ao golpismo de Bolsonaro em prol da legalidade.
Por fim, Aldo Rebelo, ex-deputado, ministro e por décadas um dos principais quadros do PCdoB e hoje no Solidariedade, deu uma entrevista para o canal no YouTube da revista Carta Capital. O título do vídeo é ilustrativo: “Exército resiste ao ‘regime’ Bolsonaro. Por que?.” Na entrevista, Aldo cobre os militares de elogios: democráticos, legalistas, profissionais, dedicados e afins. O nível de elogios é tão grande que, em vários momentos, Aldo mobiliza a imagem do militar na selvagem amazônica, “cuidando dos índios”, atendendo ribeirinhos, ganhando um salário baixíssimo.
O quadro de exemplos está completo. A partir disso, podemos fazer dois apontamentos fundamentais. Pedro Marin, editor da Revista Opera e um dos autores do livro Carta no Coturno, vem chamando atenção para o novo protagonismo político dos militares e ações que precedem a ascensão de Bolsonaro à presidência. A tese que Pedro Marin sustenta, e que concordamos e seguimos, é que os militares se utilizaram de Bolsonaro no seu projeto de poder, e o líder neofascista fez o mesmo, numa comunhão de interesses. Mas, o Partido Fardado é cuidadoso com sua autonomia política e com o andamento do projeto próprio.
Quando Bolsonaro diz que pode usar o “seu exército” – e vamos supor que a narrativa dos monopólios de mídia esteja correta, e a crise militar tenha ocorrido devido a uma tentativa de decretar estado de sítio ou até mesmo um fechamento total do regime –, por qual motivo os militares diriam amém para o presidente? Uma resposta positiva iria ferir a autonomia política do projeto próprio dos militares, colocando-os na prática e publicamente como “o Exército de Bolsonaro” e em uma posição complicada: o meio fechamento de regime, com as reações, tende a caminhar para um fechamento progressivo maior – mas hoje essa remodelação do sistema político não encontra apoio na burguesia e na Embaixada de Washington – ou para um recuo e a volta da “normalidade”.
No segundo caso, um ato com tendência a desmoralizar politicamente o Partido Fardado; no primeiro, uma aventura sem sólido apoio na classe dominante e no cenário internacional, comprometendo as opções de jogo político do Partido Fardado. Aliado a isso, se é verdade o discurso dos monopólios de mídia de que Bolsonaro queria operar um golpe de estado ou um semi fechamento de regime, a permanência dos milhares de militares no governo poderia ser observada como cumplicidade e ausência de antagonismo irreconciliável com um projeto golpista, mas é mostrada como compromisso democrático, legalista, constitucional. Então o mesmo militar que no jogo do dia a dia ameaçava o Congresso e o STF, torna-se um democrata ao cobrir com um manto de discurso legalista o ato político de preservar sua autonomia.
É como se dois filhos roubassem dinheiro da carteira do pai, sempre em pequenas quantidades para ele não perceber e o roubo ser permanente. Um belo dia, um dos irmãos decide roubar o cofre do pai e o outro irmão recusa participar da empreitada, dada a situação atual de roubos pequenos, mas constantes, ser confortável. Com essa recusa, só o irmão mais ambicioso é apresentado como ladrão, enquanto o segundo é visto como o baluarte da honestidade.
Cabe também dizer como a quartelização da política – termo emprestado de Pedro Marin – foi naturalizada, e a massiva participação dos militares no governo é tratada como erro, engano, equívoco e nunca como projeto. Não é preciso ser um grande especialista em questões militares para saber que os militares, da ativa ou reserva, mantêm unidade de ação e comando a partir da farda, que sua participação no governo não é o mesmo que a participação de civis. Por que tantos militares entraram e por que, mesmo com a tragédia da pandemia, permanecem? É incrível como essas perguntas não são feitas.
Para concluir esse texto, terei que recorrer a uma longa citação. Pedro Marin, em artigo de 26 de fevereiro de 2021, chamado “A ‘descoberta’ do Partido Fardado e as perguntas que não querem calar” , apresenta as perguntas fundamentais, mas evitadas por aqueles que querem negar a centralidade dos coturnos e fuzis na política brasileira. Evitar fazer as perguntas corretas, ocultando a existência do Partido Fardado, pode ser o primeiro grande sinal do próximo pacto de esquecimento nacional. Pessoalmente, não acho que Guilherme Boulos participaria desse pacto e tenho dúvidas quanto a Ciro Gomes, mas desde já afirmo que todo discurso dos militares como democratas, constitucionalistas ou sem responsabilidade central no genocídio que vivemos contribui para a próxima “anistia ampla, geral e irrestrita”.
Seguem as perguntas formuladas por Pedro Marin:
Primeiro. Em agosto de 2019 o ministro Dias Toffoli, então presidente do STF, declarou em entrevista à Veja que, durante uma “crise institucional” ocorrida em abril daquele ano, “um dos generais próximos do presidente” consultou um ministro do Supremo Tribunal, “para saber se estaria correta a sua interpretação da Constituição segundo a qual o Exército, em caso de necessidade, poderia lançar mão das tropas para garantir ‘a lei e a ordem’”. Isto é, consultou um ministro do STF sobre a constitucionalidade de um golpe. Não cala a pergunta: quem foi o “general próximo do presidente”, e com qual ministro ele falou? O senhor Toffoli certamente pode responder.
Segundo. Há algumas semanas, dias antes das eleições para a presidência da Câmara e Senado, um assessor do vice-presidente-general, Hamilton Mourão, teria trocado mensagens com deputados no sentido de articular uma possível sucessão de Mourão à presidência. O assessor declarou que fora hackeado; a vice-presidência declarou que o vazamento era inverídico e, ao fim, o vice-presidente-general disse que o assessor agira sem seu consentimento, demitindo-o. Afinal, o assessor foi hackeado? Se sim, por quem? O vazamento era falso? O assessor do vice-presidente de fato agiu por suas costas? De certo o assessor Ricardo Roesch pode nos esclarecer.
Terceiro. Em 30 de abril, o decreto que instituiu a Operação Verde Brasil na Amazônia se extinguirá. Os militares deixarão a região, restringindo sua presença a 11 municípios. A pergunta: o que os militares fizeram na Amazônia nestes últimos anos, a tão elevados custos? Se houve aumento nos índices criminais na região, nas queimadas, nas invasões, na mineração ilegal, eles não devem ser responsabilizados? Não são os generais – dentre eles, Mourão, presidente do Conselho da Amazônia – tão responsáveis quanto o inepto ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, contra o qual todas as bocas falaram em meio ao silêncio sobre os fardados?
Quarto. Os militares continuamente apontam possíveis cenários caóticos no horizonte. Como os militares se comportariam em um cenário de ampla revolta popular? O que fariam se algo similar a junho de 2013 ocorresse hoje? Se tivéssemos manifestações massivas, como no Chile, ou se grupos civis efetuassem bloqueios e atos de rua pedindo a cabeça de algum governador, como ocorreu na Bolívia com o presidente Evo Morales?
Quinto. O filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, certa feita, disse que para fechar o STF bastavam “um cabo e um soldado”. O atual vice-presidente-general, Hamilton Mourão, falou no passado, respondendo a uma pergunta sobre um golpe, em “aproximações sucessivas” caso o “problema político” não fosse resolvido. Em entrevista à DW, perguntado sobre declarações protogolpistas de Bolsonaro, disse que não se trata de “conversa perigosa”; “é perigoso quando você tem poder de fazer o que quer, mas ninguém tem poder de fazer o que quer aqui no Brasil.” Pergunta: os militares, que fundaram a República às espadadas, participaram do Golpe de Três de Novembro, fizeram a Revolução de 30 e participaram do governo Getúlio, fizeram o Estado Novo para depois golpear o presidente, e por fim estabeleceram a larga noite, em um abril de 1964, não podem fazer o que quiserem? Se sim, o que querem?
Sexto. O presidente Jair Bolsonaro agradeceu ao general Villas Bôas, um dia depois de sua posse, dizendo que o general era o responsável por ele conquistar o cargo e que o que conversaram “morreria com ele”. Já que o presidente fez esse irreversível pacto de morte, por que Villas Bôas não detalha ao público ao que ele se referia?
Sétimo. Se o Brasil vivesse algo similar à invasão ao Capitólio norte-americano pelos apoiadores de Trump, os militares defenderiam o prédio ou o atacariam? Comprometeriam-se com a legalidade ou com os invasores? E se vencesse em 2022 um candidato que não os agradasse, comprometido com uma reforma para levar os coturnos de volta à caserna, mexendo no artigo 142 da Constituição, como reagiriam?
Oitavo. Em uma entrevista de junho de 2020, em meio a mais uma “crise institucional”, o ministro-chefe-general da Secretaria do Governo, Luiz Eduardo Ramos, deu a seguinte declaração: “Fui instrutor da academia por vários anos e vi várias turmas se formarem lá, que me conhecem e eu os conheço até hoje. Esses ex-cadetes atualmente estão comandando unidades do Exército. Ou seja, eles têm tropas nas mãos. Para eles, é ultrajante e ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército, vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime democrático. O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda.” Pergunta: esses ex-cadetes, hoje com tropas nas mãos – fato que o general aponta tão proficuamente –, também não consideram “ultrajante e ofensivo” dizer que a ditadura militar foi… uma ditadura militar? O que é “esticar a corda”? E, se esticar, arrebenta?
Nono. Recentemente um minotauro descerebrado com cargo parlamentar foi preso, após proferir, de seu labirinto, alguns impropérios contra integrantes do STF, em defesa do general Villas Bôas. O general, por sua vez, confessou o que era óbvio – que a mensagem que disparara pelo Twitter às vésperas do julgamento sobre o habeas corpus do ex-presidente Lula era um “alerta”. Pergunta: é constitucional que o comandante do Exército “alerte” o Supremo Tribunal? Não cabe, no mínimo, que ele seja convocado a prestar esclarecimentos? Se o ministro Edson Fachin considera o episódio “intolerável e inaceitável”, por que o STF o tolera e o aceita?
Décimo. Por fim, prevendo que para tais perguntas não haverá respostas, proponho uma à qual não se deve nunca responder, mas à qual é necessário sempre remeter o pensamento: se os militares se comportarem hoje como se comportaram ao longo de toda a República, o que farão as organizações de esquerda? O que fará o Congresso? O que fará o Supremo? Estamos prontos para reagir, ou repetiremos o deprimente espetáculo do 1º de abril de 1964? Acima de tudo: o que podemos fazer hoje para, adiantando-se ao tempo, estarmos preparados para a tempestade?