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Mito virou defunto

Bolsonaro perde domínio da rua e reeleição balança

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo

Desde que me conheço por gente, o padrão mundial são manifestações contra governos, governantes ou malfeitos de ambos. Nos últimos tempos, foi assim na França, China, Egito, Tunísia, Grécia, Turquia e, claro, no Brasil. Uma das maiores da história mundial ocorreu em maio de 1968, quando cerca de 9 milhões de pessoas (a maioria estudantes) transformaram Paris em campo de guerra. O movimento enfraqueceu politicamente o então presidente, general Charles De Gaulle, que renunciou um ano depois. No mesmo ano, O Rio de Janeiro parou contra a ditadura. Durante um suposto confronto, policiais militares mataram o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto. Esse assassinato marcou o início de um ano turbulento e de intensas mobilizações contrárias aos militares. O desfecho foi o endurecimento do regime, incluindo a decretação, em 13 de dezembro de 1968, do chamado Ato Institucional número 5 (AI-5).

A história conta que, em 2010, na Tunísia, um jovem vendedor de frutas teve seu carrinho confiscado pelas autoridades locais. Desempregado e desesperado, ateou fogo ao próprio corpo em protesto contra as condições de vida no país. Sua morte espalhou o ódio pelo presidente Zine el-Abdine Bem Ali, obrigado a fugir para a Arábia Saudita dez dias depois da confusão. Estimulados pelos tunisianos, os egípcios precisaram de apenas 18 dias paras derrubar o regime de Osni Mubarak, no poder havia 30 anos. Talvez a cena mais emblemática teve como protagonista um jovem chinês solitário e desarmado.

Em 1989, ele parou uma fileira de tanques de guerra na China. O protesto da Praça da Paz Celestial, também conhecido como Massacre da Paz Celestial, foi uma série de manifestações em Pequim, ocorridas entre 15 de abril e 4 de junho de 89. Segundo dados da época, 2,6 pessoas teriam morrido. Herói do povo, o rapaz desapareceu. No Brasil, quem não se lembra do dia 13 de março 2016, data em que boa parte do país parou para protestar contra o governo Dilma Rousseff e a corrupção. Para políticos e historiadores, foi o maior ato sobre política na crônica nacional, superando as Diretas Já, entre maio de 1983 e abril de 1984.

As referências aos fatos históricos não são apenas ilustrativas. Elas servem para comprovar que não temos mais o feeling e a cultura das manifestações. Se compararmos com o último mandatário norte-americano, também desmistifica a tese de que tudo que é bom para os Estados Unidos é ótimo para o Brasil. Novamente aprendemos errado e conseguimos piorar o que já estava mais ou menos desde a metade da administração de Michel Temer. Perdemos definitivamente o timing a partir da posse de Jair Bolsonaro, quando, a pretexto de fechar o Congresso e prender ministros do Supremo Tribunal, os simpatizantes do extremismo à direita e da atual gestão passaram a “protestar” a favor de um presidente. Partidários de Donald Trump haviam feito pior. Perderam a eleição, invadiram o Capitólio e, por isso, dezenas deles acabaram presos. Inédita e diferente de se manifestar contrariamente, a “nova” prática no Brasil durou e fez sucesso somente até esse sábado (29).

Nesse dia, centenas de milhares de brasileiros mostraram que também há extremos no lado oposto. Didaticamente, a resposta ao Palácio do Planalto foi a seguinte: as ruas, praças e avenidas são de todos. Ainda que uma maioria vestisse vermelho, a palavra de ordem não tinha cor ou viés partidário. O som era único: vento que vento lá venta cá. De volta à normalidade, a primeira grande manifestação contra o governo Bolsonaro e a favor da vacina assustou e mudou o humor do presidente e de suas principais lideranças, que até agora nadavam de braçada pelos atalhos que poderiam levá-los à perpetuidade. Não contavam com as curvas e com os buracos do caminho. Paralelamente ao avanço da candidatura de Luiz Inácio, os atos do fim de semana acenderam a luz amarela no front daqueles que já estavam se a costumando com a ideia de Jair Messias eterno. Em síntese, acusaram o golpe.

O discurso do líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), é cristalino. Segundo ele, os protestos antecipam a eleição e consolidam a polarização entre Lula e Bolsonaro. Os governistas não conseguem, mas é relevante explicar algumas diferenças entre os movimentos pró e contra o atual presidente da República. Ao contrário do que imagina o capitão, todos os protestos a seu favor foram claramente montados por uma maioria de pessoas com algum tipo de interesse na administração federal. Claro que, entre os manifestantes, havia dezenas de pessoas fechadas com os impropérios antidemocráticos do líder. Entretanto, é viajar na maionese afirmar que grandes produtores, madeireiros, garimpeiros e quetais deixaram suas fazendas e áreas ilegais de desmatamento e de extração de ouro apenas para ouvir e aplaudir os eruditos discursos do presidente. Aposto e dobro que pouquíssimos ou nenhum pequeno produtor integrou o grupo de defensores do fechamento do Supremo e do Congresso. Eles não têm tempo nem recursos para isso, pois precisam produzir para sobreviver.

O tamanho das manifestações contra o governo já tem consequências. De concreto, além de perder o monopólio das ruas e o discurso de apoio do povo, Bolsonaro terá de se reinventar. O mito defuntou. O coro da multidão passou pelos Estados Unidos e Europa e certamente chegará à Câmara dos Deputados, onde repousam mais de 120 pedidos de impeachment. Até a fala de Ricardo Barros representa um novo horizonte para os parlamentares do Centrão, cujos votos terão novo valor de mercado a partir de agora. O mais importante é que, se não for pelo voto, dificilmente o presidente alcançará a ribalta eterna. Melhor ainda é que, pelo andar da carruagem, tudo indica que seus próximos dias, semanas, meses e ano serão de inevitável confronto com a CPI da Covid e, principalmente, com a falta de votos que ele sempre imaginou ter de sobra.

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