Justiça cega
Sistema deixa cidadão refém de Lázaros da vida
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emFaz oito longos dias um único indivíduo paralisa boa parte das polícias de Brasília e de Goiás. Trata-se de um serial killer, psicopata perigoso e com extensa ficha criminal, daquelas que assusta qualquer leigo em segurança pública. É um matador, mateiro, corajoso, mas está sozinho, contra cerca de 200 policiais civis e militares, com helicópteros, drones, inteligência e apoio de dezenas de olheiros das comunidades que ele já invadiu. Nesse período, o indigitado matou quatro pessoas, torturou outras tantas, incendiou carros, feriu policial e espalhou terror por onde passou. Não tenho nenhuma expertise nessa área, tampouco duvido da capacidade dos aparatos dos dois governadores. Tenho certeza de que os policiais brasilienses e goianos estão fazendo o que podem. O problema é justamente esse. E se não puderem mais do que isso? E se não fosse apenas um?
Será que os grupamentos locais de segurança teriam condições de caçar e prender uma quadrilha de dez ou 12 elementos dessa periculosidade? Tenho minhas dúvidas. Sem mais nada a perder na vida, Lázaro Barbosa de Souza, de 32 anos, está dando um “baile” na polícia de duas cidades. Como disse o próprio pai, Lázaro é um monstro, mas está só, acuado, com fome, frio, sede e medo, se é que ainda consegue ter esse sentimento. Talvez um dia o peguem. Estou na torcida, porque difícil assistir e não se envolver no sofrimento daqueles que tiveram de sair de suas casas para fugir do rastro homicida do meliante, cujos crimes são conhecidos de todo sistema prisional e certamente de muitos senhores de toga.
Lázaro não é primário. Já esteve preso e foi solto incontáveis vezes. Não tenho conhecimento de toda a história, mas improvável acreditar que ele não tenha sido liberado em diversas ocasiões ainda na audiência de custódia. Se eu estiver errado – tomara que sim -, o fato é que ele foi preso, condenado e mandado para casa em um desses saidões com critérios desconhecidos e baseados em leis anacrônicas e feitas para garantir a integridade ou sei lá o que de bandidos, alguns sem qualquer condição de socialização. Está claro que ele não era merecedor desse benefício. Para os autores e aplicadores dessas leis, a sociedade honesta, cumpridora de deveres e pagadora de impostos é o que menos importa. Uniforme e já digitado nos computadores de suas excelências, o argumento básico é o do princípio da insignificância.
Em outras palavras, são considerados de pequena monta (bagatela) assaltar dez passageiros em um ônibus, furtar uma carteira com R$ 100,00 ou um celular de última geração ou ainda roubar 20 pacotes de cigarros de um supermercado. Basta que o autor não use armas ou violência. De tão simplória, a análise não percebe que os R$ 100,00 certamente fizeram ou farão muita falta ao assaltado. Simples para quem toma decisões enclausurados em gabinetes refrigerados e assistidos por um séquito de serviçais regiamente pagos com recursos decorrentes dos contribuintes inseguros. O mundo torce para que foras da lei consigam a ressocialização. Difícil é eles admitirem que esse é o melhor caminho. A vida “fácil” no crime não é longa, mas supre necessidades mais imediatas para aqueles que nunca se acostumaram ao trabalho honesto.
Reconheço que a cadeia é uma escola do crime e que todos os presidiários têm o direito de respirar ares menos viciados. Também entendo que as leis precisam ser cumpridas e que, ordinariamente, os magistrados da área acreditam que o preso por roubo de bobagens não evoluirá para crimes hediondos. Inadmissível é aceitar os saidões sem avaliações prévias do passado criminoso do beneficiado. Se aboliram o antigo exame criminológico, suas excelências poderiam recorrer a outros recursos. Por exemplo, obrigar suas assessorias a pesquisar antes de mandar de volta às ruas punguistas, marginais, homicidas, estupradores e feminicidas, com os quais não gostariam de cruzar. Sem entrar no mérito, via de regra isso ocorre por atacado.
São dezenas, centenas de foras da lei circulando pelos mesmos espaços do cidadão de bem com salvo conduto da União, do Estado e com beneplácito da Justiça. Não bastasse o enclausuramento recomendado para controle da pandemia, viramos refém de nossas leis. Não podemos mais circular durante determinados horários ou em determinados locais, pois estaremos ultrapassando os limites da marginália. As ruas, os becos e as praças públicas não são mais nossas. Estamos presos em casa por ordem expressa da bandidagem. Denunciar o assaltante do ônibus ou da parada? Entregar o suspeito de roubo a residências? E o risco? Reitero que, desde que não haja violência, esses são crimes tipificados como de pequena monta.
A consequência é nenhuma. A maioria esmagadora desse tipo de delinquente é solta na audiência de custódia. Ou seja, não chega a ficar preso 24 horas. É solto e, obviamente, volta ao crime no dia seguinte. Ás vezes, horas após. O mesmo Estado que não o ensinou a ser cidadão honrado o autoriza a permanecer nas sombras. Lamentavelmente, isso acontece uma, dez, 20 vezes e pode ter acontecido com Lázaro Barbosa, o mesmo que agora dribla o sistema que deveria tê-lo sob tutela faz tempo. Em decorrência da custódia ou do saidão que libera bandido e prende cidadão, ele está na rua. Além de urgente, atualizar as leis é uma decisão para juízes e políticos corajosos. De concreto, nós, pagadores de impostos, estamos à mercê dos bandidos. Será que um dia Deus nos salvará?