Naturalistas e índios
Como é viver em uma terra sem florestas
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emDois naturalistas ingleses – Alfred Russell Wallace (1823-1913) e Henry Walter Bates (1825-1892) – percorreram e estudaram a Amazônia e mantiveram um diálogo com os indígenas, ribeirinhos e afrodescendentes, sem os quais não teriam podido coletar e classificar mais de 8.000 espécies da floresta amazônica. O primeiro passou quatro e o segundo onze anos na região. Os dois chegaram em 1848 e encontraram o Pará dilacerado pela guerra da Cabanagem e pela epidemia da varíola.
Wallace sacou, desde cedo, o impacto da atividade humana sobre o meio ambiente. Ele descobriu, por conta própria, o princípio da luta pela vida e pela sobrevivência, apresentando ao mundo científico, em coautoria com Darwin, uma súmula do que ambos pensavam acerca da seleção natural. Darwin nascido em berço de ouro viveu sempre de rendas. Já Wallace, um pobretão, ralou duro a vida inteira.
Dotados de sólida formação científica, com extraordinária capacidade de observação e disciplina rigorosa de trabalho, Wallace e Bates haviam assimilado o conhecimento europeu mais avançado na época. Essa era a condição necessária, mas não suficiente, para revelar os mistérios da Amazônia. Era preciso, além disso, sabedoria e humildade para aprender com os sábios da região, autores das cartilhas da floresta, que continham os saberes milenares produzidos pelos índios. Desta forma, estudaram a flora e a fauna e produziram conhecimentos etnográficos e históricos publicados em vários livros.
A cartilha da floresta
O negro Isidoro e o indígena Alexandre foram os professores que transmitiram aos dois cientistas ingleses aquilo que sabiam. Bates reconhece isso em “Um naturalista no rio Amazonas”:
– “Nosso auxiliar mais valioso era Alexandre, um jovem tapuia, inteligente e afável, perito em navegação e incansável caçador. À sua dedicação devemos o fato de terem sido levados avante todos os objetivos de nossa viagem”.
Cognominado de “Capitão”, o índio Alexandre ensinou aos dois cientistas as classificações nativas de bichos e plantas e introduziu-os na taxonomia e na ciência da floresta, com observações valiosas sobre o comportamento das plantas e dos animais. Foi ele o responsável por grande parte da coleção botânica e zoológica enviada para Londres, com pássaros, veados, macacos, insetos e borboletas.
Nos rios Negro e Uaupés, Wallace teve a oportunidade de continuar a aprendizagem com outros índios, com quem aprendeu sobre os peixes, 212 deles descritos e ilustrados no livro “Fishes of the Rio Negro”, além da descrição das aves. Ao retirar as penas de uma arara vermelha, descobriu que ela não tinha as cores que a natureza lhe havia dado, “pois esses índios dominam a arte de alterar a coloração das penas dos pássaros”.
No segundo capítulo da “Viagens pelos rios Amazonas e Negro”, Wallace nos apresenta o outro professor de origem africana, que falava com as árvores:
– “Isidoro, o velho guia que atualmente se dedicava aos serviços domésticos, trabalhando como cozinheiro e pau para toda obra, labutara outrora na floresta, estando a par não só dos nomes de todas as árvores, como também de suas propriedades e empregos”.
A leitura da natureza
Segundo Wallace, Isidoro não tinha muita paciência com a ignorância dos dois cientistas:
– “Era um homem de comportamento quase taciturno, salvo quando se irritava com a nossa incrível incapacidade de compreender suas explicações. Aí ele passava a gesticular com veemência. Gostava de exibir seus conhecimentos sobre esses assuntos acerca dos quais ainda nos encontrávamos no estágio da mais completa ignorância, mas cuja aprendizagem queríamos efetivamente alcançar”.
Wallace dá mais detalhes sobre a pedagogia do professor Isidoro:
– “Seu método de ensino constava de uma série de rápidas observações sobre as árvores à medida que íamos passando por elas. Ele dava a impressão de estar falando antes com as árvores do que propriamente conosco, exceto quando solicitávamos algum esclarecimento adicional”.
A sala de aula era a própria floresta. Nas longas caminhadas, Isidoro, o descendente africano que aprendera com os índios a ler a natureza amazônica, ia explicando tudo direitinho.
– “Esta – dizia – é a ucuuba, remédio muito bom. Serve para dor de garganta”.
Para que os gringos aprendessem melhor, Isidoro usava seu próprio corpo como material didático e, “como ilustração, fingia fazer gargarejos, enquanto apontava para a seiva aquosa que escorria do tronco ferido”.
Wallace descreve uma dessas aulas, onde Isidoro aponta para a cupiúba e explica ser madeira boa para fazer casa e assoalhos. Outras, para fazer remo e outras ainda, para fazer carvão.
O Isidoro sozinho era uma escola de tempo integral, se responsabilizava pela merenda escolar, cozinhando saborosos pratos regionais. No final de uma de suas aulas, derrubou uma palmeira de açaí para extrair palmito, preparando-o para os seus dois alunos famintos.
– Trata-se de um alimento saboroso, de paladar levemente adocicado” – comenta Wallace.
O livro das árvores
Para completar, a escola de Isidoro oferecia ainda assistência médica. Quando Wallace apareceu mancando com uma coceira braba, gerada por um pontinho preto do tamanho de uma ervilha encravado em seu dedo, Isidoro logo diagnosticou:
– “É bicho-de-pé”.
O próprio Wallace quis extrai-lo com uma agulha, mas não conseguiu. Uma vez mais seu professor lhe foi útil, ensinando-o a esfregar um pouco de rapé no local, o que ele fez, ficando inteiramente curado.
Diante dos saberes tradicionais transmitidos oralmente, Wallace concluiu que “os índios do vale amazônico parecem superiores, tanto física como intelectualmente”, concordando assim com um viajante que o antecedera, o príncipe Adalberto da Prússia.
Entre tantas outras histórias, o naturalista inglês descreve um diálogo no meio da floresta. Depois de jantar um porco do mato, Wallace estava arrodeado por “treze índios nus que tagarelavam numa língua desconhecida. Apenas dois deles sabiam falar o português” e fizeram perguntas sobre a Inglaterra:
– Fiquei conversando com eles, respondendo as mais diversas perguntas: “De onde vinha o ferro? Como se fazia a chita? No meu país nascia a planta que dava papel? Havia lá muitas mandiocas e bananas?” Eles ficaram espantadíssimos quando lhes contei que lá só havia homens brancos. – Então, quem é que trabalha? – perguntaram. Outra coisa que não podiam compreender era como seria possível viver numa terra sem floresta”.
Rua Aldevan Baniwa
Alexandre, Isidoro, Wallace e Bates construíram uma articulação do conhecimento científico com o saber tradicional – a sabedoria profunda a nós legada, que dignifica a raça humana. Eles sobreviveram a uma epidemia de varíola – a “peste branca” trazida nos navios portugueses – que se alastrou pela Amazônia, numa época em que os estudos imunológicos não estavam tão avançados. É verdade que a vacina antivariólica já havia chegado ao Brasil em 1804, mas a Junta Vacínica da Corte, criada por d. João VI no Rio, tinha o braço curto e atuação inexpressiva. De volta a Londres, anos depois, Wallace escreveu:
– A vacina é um engano: sua imposição, um crime.
Ele se tornou um militante contra a obrigatoriedade da vacina no Reino Unido. A Comissão Real de especialistas que o inquiriu concluiu ter Wallace acreditado em estatísticas consideradas fraudulentas pela The Lancet – uma revista científica criada em 1823 para abordar questões de saúde coletiva e que na atualidade continua sendo publicada. Era como se um cientista aceitasse hoje como verdadeiro o levantamento do funcionário bolsonarista do TCU sobre as vítimas do coronavirus.
Sobre a varíola no Amazonas, Wallace narra seu encontro no rio Negro com Frei José dos Inocentes, que havia sugerido às autoridades “um método prático e barato de exterminar os índios: colocar as roupas contaminadas nos locais que os índios frequentam” […], isto foi feito, segundo o frei, que celebrou: “Quatro ou cinco tribos foram totalmente dizimadas”.
Diante de tal relato, Wallace comenta:
– Foi com dificuldade que contive um estremecimento ao ouvir a narrativa daquele massacre a sangue-frio, contada de maneira tão tranquila e indiferente” (p.204).
Frei José, reverenciado com nome de rua no centro de Manaus, um dia terá seu nome trocado para rua Escritor Aldevan Baniwa, como aconteceu em Niterói com a Coronel Moreira César, que agora é Ator Paulo Gustavo.