O Haiti não é aqui
Golpe contra eleição pode gerar enquadramento de impeachment
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emA dois passos do precipício, o projeto de lei que prevê a implementação do voto impresso não deve passar sequer pela comissão especial que analisa a proposta. Mudar o relatório foi uma manobra infantil dos governistas, na medida em que, assim como não conseguiram derrubar a sessão do colegiado, improvável que impeçam a rejeição definitiva do incontido desejo presidencial de usar acusações infundadas de fraudes no sistema eletrônico de votação para justificar uma iminente derrota nas eleições de 2022. Estranhas, para não dizer absurdas, as suspeitas que embasaram o sonho dourado da auditagem do voto nunca foram comprovadas. Foi apenas uma vã tentativa de endossar uma outra lenda acalentada desde o início da vitoriosa campanha que levou a turba ao poder: o golpe.
Como venceram, mas não convenceram, acreditaram que a ameaça golpista assustaria cariocas, paulistas, mineiros, maranhenses, gaúchos, pernambucanos, alagoanos e baianos. Apenas os goianos continuam assustados, mas com o fantasma de Lázaro Barbosa. Perceberam a tempo que o Haiti realmente não é aqui. Tudo indica que, mesmo considerando os insinuantes e intermitentes soluços dos últimos dias, chova um rio de canivetes ou faça sol de escaldar serpentes no asfalto, o povo votará soberanamente no ano que vem. E certamente sem o voto impresso. Guardadas as devidas hipérboles, tudo ocorrerá com a normalidade de um vulcão adormecido há séculos ou de um urso de determinadas espécies em plena hibernação.
Do alto de sua reluzente acomia, o próximo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Alexandre de Moraes, é daqueles magistrados que não se intimidam com cara feia ou bravatas. Ainda longe de ocupar a cadeira mais alta da Corte Eleitoral, seus recados têm ecoado com a rapidez de um raio pelos principais endereços da Esplanada dos Ministérios. Um deles é uma resposta clara ao rei da coação e da intimidação. “Os brasileiros podem confiar nas Instituições. Eles escolherão seus dirigentes nas eleições de 2022 com liberdade e sigilo do voto. Não serão admitidos atos contra a democracia e o Estado de Direito, por configurar crimes comum e de responsabilidade”, escreveu o ministro em seu perfil no Twitter.
Com o discurso da auditagem do voto esvaziado e sem feito algum para chamar de seu, o candidato da direita deixou de ser um produto a ser experimentado. Na verdade, foi comprado, testado, reprovado e deve ser devolvido. Exatamente como algo que compramos ou “ganhamos de presente” e, pouco tempo depois, não gostamos por entender que o gato era lebre. O fim do sentimento antipetista chegou junto com o encerramento da fase de testes eleitorais. Estamos próximos de um pleito presidencial sem discursos ideológicos. Teremos alguns conflitos emocionais, mas nenhum tomará novamente o lugar da razão no momento da escolha do chefe da nação. Aposto e dobro que também não haverá mais fato novo capaz de confundir a cabeça ou sensibilizar o coração do eleitor indefinido.
Em resumo, como eleitor à moda antiga duvido que uma faca consiga repetir cortes nos conceitos e valores do povo. Impossível que um raio caia duas vezes no mesmo lugar. Será uma eleição sem componentes subjetivos. Como ainda não há nomes diferentes na lista de presidenciáveis, ganhará aquele em quem o povo novamente apostar. Não há mais lugar para aventureiros, tampouco para candidatos ao Sonho de uma Noite de Verão, conto de Willian Shakespeare, cujo enredo explora de forma divertida a idolatria amorosa em oposição ao amor verdadeiro.
Portanto, acabou a fase de chantagens golpistas, do blá blá blá contra a confiabilidade das urnas e das mandingas eleitorais. Agora é no voto. Leva quem tiver mais. Simples assim. A quadra é de responsabilidade e seriedade. Chega de brincar com 212 milhões de pessoas. Discursos ufanísticos, utilização do futebol como válvula de escape, galinha preta, vela branca e faca afiada não valem mais nem em torneios de várzea. Aliás, rememorando uma vasta coleção de frases futebolísticas inesquecíveis, vale a pena citar quatro antigas, mas relevantes para o atual momento do país. Um das melhores foi cunhada pelo jornalista e treinador João Saldanha: “Se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano acabaria sempre empatado”. Filósofo do futebol entre os anos 50 e 70, mas pouco lembrado pelos mais novos, Neném Prancha permanece vivo no folclore do esporte.
Também roupeiro, massagista e técnico lançou para posteridade ensinamentos inesquecíveis: “O importante é o principal, o resto é secundário. No fim de tudo, o que importa é o que interessa”; “Futebol é muito simples: quem tem a bola ataca; quem não tem defende”; e “Se concentração ganhasse jogo, o time do presídio não perdia uma partida”. Tudo isso para concordar com o atual presidente o TSE, ministro Luiz Roberto Barroso, para quem tentativas de obstrução das eleições “podem levar ao enquadramento na Lei de Impeachment”. Conforme Barroso, a realização de eleições, na data prevista na Constituição, “é pressuposto do regime democrático. Qualquer atuação no sentido de impedir sua ocorrência viola princípios constitucionais”. E ponto. Quanto ao voto impresso natimorto, um dia esse povo se convencerá de que perdeu dois anos e meio defendendo o indefensável.