Vai ou racha
‘Esquerda se une para tirar Bolsonaro ou enfrenta ruptura’
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emO “Fora Bolsonaro!”, a palavra de ordem que unifica a ação das massas, cobra da esquerda socialista a tarefa pedagógica de denúncia da sociedade de classes. A campanha pelo impeachment, portanto, é, a um tempo, tática e estratégica, pelo seu claro objeto, em si, e por constituir espaço privilegiado para a retomada do papel de sujeito pelo movimento popular. Para além da remoção do entulho presidencial nosso objetivo mira a construção de um novo pacto que aponte para uma nova ordem econômico-social. Não há hierarquia de metas, mas simultaneidade na ação.
O bolsonarismo deve ser denunciado, por si mesmo (trata-se de uma esquizofrenia política) e como produto da desordem estrutural gestada pelo capitalismo tupiniquim, subdesenvolvido, inconcluso, trabalhado pela dependência ideológica de uma burguesia alienada e forânea, rentista, anti-industrialista e antirreformista. O regime antinacional e antipopular gerado a partir das condições abertas pelo golpe de 2016 exaspera os efeitos da crise: ela é mais severa do que pode sugerir sua aparência, e não conhecerá alternativa no atual regime, que possibilita o governo de 1% de brancos milionários sobre o conjunto da sociedade brasileira.
Não obstante o caráter dependente e subalterno como o país, à mercê dos interesses da casa-grande, se inseriu na economia internacional, fracassaram até aqui todas as tentativas de integração com o capitalismo: na primeira república, o liberalismo associado ao latifúndio; o liberalismo da “revolução” de 1930 e o intervencionismo do Estado Novo; a industrialização dependente dos anos 1950; a modernização autoritária do mandarinato militar; o neoliberalismo democrático após a ditadura; a integração acrítica ao globalismo com Collor e FHC, e, finalmente, o neoliberalismo autoritário decorrente do golpe de 2016.
Até meados dos anos 1930 do século passado o café respondia por 70% das receitas brasileiras de exportação. Quando ingressamos no terceiro decênio do século 21 nossa balança comercial é dependente do agronegócio. A atividade econômica regrediu 7% desde 2014; de 6º parque industrial do mundo, somos hoje o 16º; representamos apenas 1,6% do PIB mundial. Somos a 10ª sociedade mais desigual do planeta, num ranking de 140 países. A colônia pelo visto, não é uma fase ou período de nossa formação histórica, é nossa permanente danação.
Convertidos à condição de pária internacional, permanecemos na periferia do capitalismo e, de regresso em regresso, retornamos à condição de economia agroexportadora, a classificação que trazemos da colônia, fundada no latifúndio, na escravidão negra e no genocídio dos povos nativos. Passados cinco séculos somos ainda predominantemente exportadores de commodities: madeira da Amazônia devastada, minério in natura, soja e outros cereais e proteína animal. O agronegócio representa ¼ do PIB nacional e 48% do total das exportações brasileiras em 2020. Quanto mais se desenvolve, isto é, quanto mais se consolida como empresa capitalista, mais expulsa para as periferias das grandes cidades as populações rurais. A indústria, que nos anos 80 do século passado respondia por 40% da composição do PIB, hoje gira entre 13% e 11%.
Na segunda metade dos anos 1940, precisamente em 1945, depois das insurgências de 1922 e 1924, do crash da bolsa de Nova York (1929), da chamada revolução de 1930 e da queda dos preços do café, da intentona de 1932 (levante das oligarquias paulistas contra as promessas industrializantes do novo regime), depois da Segunda Guerra Mundial – o confronto de potências altamente industrializadas –, isto é, já no final do Estado Novo, Eugênio Gudin, um dos mais festejados e poderosos economistas brasileiros, eminência do monetarismo nacional, contrapunha-se ao projeto de Roberto Simonsen, empresário paulista, que defendia a industrialização do país. Escrevia o fundador do IBRE/FGV: “(…) precisamos é de aumentar nossa produtividade agrícola, em vez de menosprezar a única atividade econômica em que demonstramos capacidade para produzir vantajosamente, isto é, para exportar”. (A controvérsia do planejamento na economia brasileira. IPEA. 2010).
Naquele então, Roberto Simonsen, até hoje o mais importante intelectual orgânico da burguesia nacional (esta categoria em extinção), defendia, na polêmica com Gudin, a intervenção do Estado, o planejamento e a industrialização. No Brasil de nossos tristes dias é retirado do Estado seu papel como vetor de desenvolvimento, responsável pelo crescimento que experimentamos até os anos 80 do século passado; o planejamento estratégico é descartado e as políticas de geração de emprego e renda são substituídas pelo arrocho fiscal, que o monetarismo sacraliza como uma razão em si. A ameaça em 2021 é de mais neoliberalismo e mais arrocho fiscal, menos investimento em educação, em ciência e tecnologia, donde menos desenvolvimento, menos produção de riqueza, mais desemprego, redução do PIB (a previsão para 2021 é de um “crescimento'” de 1,0% e de 0,4% para 2022), menor renda per capita, por fim, maior concentração de renda. Nada disso afeta a classe dominante, porque seus interesses, internacionalizados, independem da economia doméstica.
Um pressuposto de desenvolvimento é a existência de mercado de consumo de massa, base da potência das economias dos EUA e da China. A necessidade de se constituir em grande mercado é o que levou nações até a véspera em guerra a ensarilhar armas e se reunir na União Europeia. É o caminho coletivo da Eurásia, consolidando-se como novo eixo hegemônico do mundo. Não é, porém, a opção do capitalismo brasileiro.
Como pensar em mercado interno, no Brasil, com o fim dos investimentos públicos, com o aumento dos juros que travam a expansão econômica, com o desemprego crescente e a queda da renda dos assalariados?
Temos mais de 15 milhões de desempregados. Cerca de 70 milhões de brasileiras e brasileiros integram o mundo dos sem trabalho, dos desesperançados, dos que não procuram mais emprego, dos que tentam sobreviver mediante atividades informais, biscates, e no precariado, a caminho do lupenato. A única alternativa conhecida pelo neoliberalismo para a crise é a redução dos encargos trabalhistas das empresas e a precarização do trabalho.
A desigualdade de renda – o outro nome da concentração, – não é um ente monetário, um simples indicador estatístico. Tem consequências na vida do indivíduo: quanto menos renda, mais exilado da sociedade: sem terra, sem teto, sem escola, sem saúde.
O Brasil ocupa o 3º lugar no ranking mundial de mortes de adolescentes: 10 adolescentes por dia; sete negros para cada jovem branco (dados do Mapa da violência). Quantos são moradores dos Jardins paulistanos ou de Ipanema?
A tendência, porém, no curto e no médio prazos, é o agravamento da concentração de renda. Trata-se de um determinismo do capitalismo monopolista levado aos extremos pelo caráter de nosso capitalismo periférico e dependente. Esse capitalismo não dá conta das consequências sociais derivadas do inevitável, rápido e intenso desenvolvimento das novas relações de produção e suas implicações nas relações de trabalho: as novas tecnologias, a era digital, a informática, a robótica, a chamada quarta revolução industrial, de que deriva a redução de mão de obra. O que se pode ver a olho nu, é, portanto, o agravamento das condições de vida das grandes massas. O enfrentamento de tais desafios depende da radical alteração da atual correlação de forças.
Para sair do atoleiro — uma espécie de ponto morto histórico, um momento de indecisão entre o passado e o futuro, a inercia e a ação, o velho e o novo que o passado sobrevivente aprisiona –, poucas são as alternativas: juntar forças para formar uma nova maioria ou nos prepararmos para enfrentar o ponto de ruptura gestado pelo processo social. Em qualquer hipótese, o “Fora Bolsonaro!” é o ponto de partida para a ação da esquerda socialista.
*Escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia