Reformas tortas
Emprego informal obriga povo a beber água para despistar fome
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emA taxa de desemprego no Brasil vem se mantendo numa média superior a 14%, ou seja, atinge 14,4 milhões de brasileiros. A taxa de informalidade é de 40,6% da população ocupada, totalizando 35,6 milhões de pessoas. Os trabalhadores informais incluem os indivíduos sem carteira assinada, sem CNPJ ou trabalhadores sem remuneração.
Por sua vez, o trabalho por conta própria, que inclui os chamados bicos, bateu recorde, atingindo 24,8 milhões de trabalhadores, o que corresponde a 28,3% de toda a população ocupada. Sete em cada dez novos postos de trabalho gerados no Brasil no último ano foram por conta própria.
Esse é o Brasil de hoje, com números que se chocam com as metas da reforma trabalhista, que completou quatro anos em julho e tinha como principal promessa gerar milhões de empregos.
“Setores produtivos, por exemplo, estimam que a modernização na lei trabalhista criará, a curto prazo, mais de dois milhões de empregos, sobretudo para os mais jovens”, disse o então presidente Michel Temer (MDB) após a nova lei trabalhista entrar em vigor. Na ocasião, a taxa de desemprego era de 13%.
Para entender por que o Brasil não cria mais empregos com carteira assinada, a reportagem conversou com David Deccache, doutorando em Economia pela Universidade de Brasília (UnB) e assessor econômico na Câmara dos Deputados. Leia trechos das conclusões:
Problema antigo
David Deccache afirma que os altos níveis de desemprego e informalidade que vemos hoje é um reflexo de decisões políticas que remontam a 2015 e 2016, e que atingem o fundo do poço durante a pandemia do novo coronavírus.
As medidas de austeridade fiscal implementadas pelo governo de Dilma Rousseff (PT) em 2015 empurraram muitas pessoas para a informalidade, uma vez que, desempregada, a população começa a fazer bico para colocar comida na mesa, explica o economista.
O especialista acrescenta que a situação foi agravada com Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, promulgada em 2016, que limita o crescimento das despesas públicas à taxa de inflação do ano anterior, e a já citada reforma trabalhista. Para o economista, a flexibilização das regras trabalhistas não favoreceu a criação de empregos.
“O que determina o nível de emprego na economia é a demanda da economia, se você tem uma economia mais aquecida, você vai gerar mais empregos. A reforma trabalhista não serve para gerar emprego, o objetivo dela é outro: é recompor taxa de lucro do capitalista em um momento de crise via intensificação da exploração laboral. É esse o objetivo da reforma trabalhista. Não tem nada a ver com gerar empregos”, assevera.
Para exemplificar o fracasso dessas políticas implementadas em 2015 e 2016, o pesquisador recorda que o momento em que o número de trabalhadores informais passa a ser maioria na economia é exatamente em 2016, durante a austeridade fiscal.
A receita para o estado atual das coisas é finalizada com a pandemia de COVID-19, que levou a economia para o “fundo do poço”. Mas mesmo com a recuperação econômica que se anuncia, Deccache avalia que os trabalhos com carteira assinada não devem voltar.
“Agora com a gente saindo da pandemia, com a economia sendo retomada, os empregos gerados estão concentrados em setores informais. Ou seja, os trabalhadores não estão conseguindo empregos formais e estão fazendo bico. Esse é o cenário que a gente vive desde 2015 […]. E não há nenhuma previsão de recuperação [dos empregos formais]”, avalia.
Crise dos informais
Segundo o IBGE, o rendimento médio dos trabalhadores por conta própria no segundo trimestre de 2021 foi de R$ 1.828, bem abaixo da média do país, de R$ 2.515, e do trabalho com carteira assinada, que recebe média R$ 2.375.
Além do baixo rendimento, Deccache destaca que os informais possuem uma baixíssima proteção trabalhista e previdenciária, o que gera uma enorme massa de pessoas muito vulneráveis.
“Isso se manifesta, por exemplo, em um cenário de pandemia. Quando você fecha o comércio, essas pessoas passam por uma situação de miséria absoluta porque elas dependem de sair de casa para trazer a comida do dia seguinte. Essas pessoas entram em uma situação de extrema vulnerabilidade social. Se elas sofrem um acidente, elas não têm proteção trabalhista ou previdenciária”, alerta.
O desemprego de longa duração, quando a pessoa passa mais de dois anos direto procurando uma vaga de trabalho, também cresceu no último ano. A proporção dos que procuram uma vaga há mais de dois anos foi de 26,1% no segundo trimestre deste ano. O economista sublinha as consequências do desemprego de longo prazo.
“Hoje, 41% dos desempregados estão há mais de um ano nessa situação. Mais da metade dessas pessoas está desempregada há mais de dois anos […]. Do ponto de vista do trabalhador individual isso quer dizer que ele vai ter muita dificuldade de se realocar no mercado de trabalho, principalmente no mercado de trabalho formal. Há um processo de deterioração e depreciação da sua força de trabalho […]. Principalmente em uma fase de avanços tecnológicos muitos rápidos. Se o trabalhador que fica dois, três anos fora do mercado, ele terá dificuldade de voltar. Ele acaba se estabilizando no mercado informal, fazendo bico.”
Como reverter esse processo
Com desemprego e informalidade em alta, a arrecadação do Estado é diretamente impactada, já que uma série de tributos deixam de ser recolhidos, o que gera, na opinião de Deccache, um círculo vicioso.
“Você gera desemprego, a arrecadação cai, tanto no orçamento da seguridade social, quanto no orçamento fiscal, então a arrecadação cai como um todo. Eles então falam o seguinte: ‘Olha, a arrecadação caiu, precisamos cortar mais gastos para equilibrar as contas’. Conforme eles vão cortando gastos, que seria, por definição, renda do setor privado, a economia afunda cada vez mais. É um círculo vicioso recessivo de corte de gastos, queda na receita, legitimação de mais políticas fiscais de austeridade. Sempre prometendo mais empregos e o que acontece no final das contas é o resultado oposto, queda do nível de emprego e piora da qualidade dos poucos empregos que ainda temos”, garante o economista.
Para reverter esse quadro, é preciso que o Estado faça investimentos públicos, principalmente na construção civil, infraestrutura urbana, saneamento básico, áreas com carências históricas e que possuem alto potencial de geração de empregos formais, aponta o especialista.
Na avaliação de Deccache, também seria importante aquecer a economia por meio de gastos públicos que não necessariamente são investimentos, como com a ampliação do Bolsa Família ou outros programas de transferência de renda, como o auxílio emergencial.
Por fim, o doutorando da UnB defende que o Estado deve empregar mais pessoas, recordando que essa iniciativa foi aplicada em muitos países em diferentes momentos da história, com destaque para os EUA durante os anos 1930, quando o presidente Franklin D. Roosevelt implementou o New Deal para resolver problemas e carências sociais concretas.
“O Estado ser gerador de empregos é superimportante na fase atual do capitalismo em que a gente tem o fenômeno da ‘uberização’. A uberização antes de tudo é um processo da revolução tecnológica em prol da precarização da legislação trabalhista. Porque é muito difícil impor a legislação trabalhista às plataformas […]. O Estado gerando emprego diretamente resolve parcialmente esse problema porque se o Estado está oferecendo um emprego com salário mínimo e com diretos trabalhistas, você não vai aceitar outro tipo de trabalho que não chegue a esse piso mínimo, tanto de direitos como de salário”, conclui.