Viver é lutar
Brasil vive as desventuras de gigante esquecido pelo mundo
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emEmbora aberto ao mundo como uma feitoria agroexportadora de produtos tropicais demandados pela Europa (de início o pau de tinta que lhe deu o nome, índios apresados, papagaios e peles e, depois e por largo tempo, açúcar, algodão, ouro, prata etc.), e assim tendo crescido e se consolidado no Império (como na colônia, ainda exportador de produtos primários), o Brasil carregaria consigo o complexo do ensimesmamento. Indicadores dessa alienação foram registrados já nos primeiros anos do século 19 por Thomas Lindsey, o primeiro aventureiro inglês a deixar depoimento sobre nosso país.
Por aqui zanzou uns dois anos, entre a Bahia e, suspeita-se, uma ou outra viagem ao Rio, sempre às voltas com as autoridades reinóis que o acusavam de contrabandista. Viu nossa gente dominada pelo sentimento da autossuficiência, e inteiramente desinteressada do mundo. Registrou: “[…] E quanto a informações de brasileiros, estavam inteiramente fora de cogitações, porquanto nunca encontrei um povo tão estupidamente destituído de curiosidade. Só conhece os fatos mais notórios, como, talvez, os relativos à paz e à guerra.” [Narrativa de uma viagem ao Brasil. Londres, 1805 (São Paulo, 1969). Companhia Editora Nacional, p. 76]
Nos primeiros tempos da colonização ficamos aterrados ao litoral, “arranhando as costas como caranguejos”, como observou Frei Vicente de Salvador em sua pioneira História do Brasil. Quando desbravou o sertão, na busca do ouro, da prata e do apresamento dos silvícolas, para a escravidão e o tráfico, o conquistador – frentes de paulistas, nortistas, caboclos e mamelucos – isolou-se ainda mais em aldeamentos perdidos em meio à imensidão do território desconhecido.
O andar da história parece haver aprofundado esse sentimento de insularidade que se manifesta, até, na distante relação que mantemos com nossos vizinhos, vistos sempre de soslaio. No continente somos como uma ilha, uma civilização à parte, autarquia de costas para a civilização hispânica.
Para o comum de nosso povo (que em sua maioria vive longe das fronteiras internacionais), o mundo se apresenta de quatro em quatro anos, nas rodadas da copa do mundo de futebol. E mesmo assim só tomamos conhecimento daqueles países que são escalados para jogar conosco, segundo são apresentados pelos programas de televisão financiados pelos patrocinadores do evento. Passada a refrega, logo nos esquecemos das pequenas lições de geografia. Fora desses episódios, reina, majestosa, a absoluta ignorância de outros países e continentes, a começar pela África, de cujos povos, escravizados e martirizados, descende mais da metade dos brasileiros.
A casa-grande se descarta desse passado, como se fosse possível fugir de sua condição de herdeira do escravismo colonial; detesta nossa formação de povo (e por isso mesmo com ele não se identifica) e de país (por isso não se sente comprometida com seu destino). Sua visão de mundo é ditada pelos interesses imediatos, que estão sempre nas metrópoles hegemônicas da vez: Portugal, Inglaterra e, na república, EUA, principalmente depois da segunda grande guerra, a partir de quando a influência assumiu os contornos de tutela. Tais interesses e essa dependência, que entrelaça o econômico-militar com o ideológico, presidem a vida nacional em todos os campos de sua manifestação.
Essa visão provinciana do mundo está grafada nas páginas e nas telas do noticiário da imprensa, e reflete uma leitura reducionista da realidade que nos faz ver a humanidade e a história a partir das lentes e dos conceitos de duas ou três agências internacionais de notícias com sede no império. O noticiário dos grandes meios e os comentários e análises dos chamados “especialistas” (no mais das vezes tradutores de releases) meramente reproduzem o que nos vendem essas agências, rigorosamente atentas aos interesses de suas matrizes.
O mundo para aí. Nos tempos da Guerra Fria a fonte de “conhecimento” eram as Seleções do Reader’s Digest, já então arcaicas. Hoje, os mais ilustrados leem The Economist ou o Financial Times, sem qualquer viés crítico. E passam a desempenhar o papel de correias de transmissão da propaganda ideológica do Departamento de Estado dos EUA. O insulado país descrito por Lindsey, que só olhava para seu umbigo, agora se encontra à míngua de identificação, porque o que conhece de si chega pelo prisma da dependência ideológica, necessariamente reducionista, a nos impedir de ver o mundo em sua complexa heterogeneidade, e a compreender a história em seu amplo leque de possibilidades. Cegos e condicionados, renunciamos à escolha de nosso papel, de nossa inserção no mundo.
Esse isolamento, trabalhado pela tutela ideológica, tem afastado das análises à tragédia contemporânea a consideração do papel desempenhado pelo establishment dos EUA na desestabilização do governo Dilma (consabidamente os abalos começam a ser encetados já na presidência de Barack Obama), e na organização da extrema-direita brasileira, a partir das eleições de 2018 e vitória do insólito capitão, a que não faltou a participação ativa dos recursos monetários e políticos da Faria Lima. Os EUA de Trump e Biden nada têm por reclamar do atual governo brasileiro, posto que se trata de aliado subalterno ocupando espaço estratégico no Atlântico Sul, quando sua melhor atenção – isto é, da diplomacia canhoneira – se volta para a Eurásia, onde está sendo jogado seu destino como potência hegemônica.
A ascensão da China não apenas implica competição econômica (que não ocorria ao tempo da URSS), como sinaliza a aparentemente inevitável transição de poder recalcitrante do Ocidente para a Eurásia, transição que não conhece precedente histórico que tenha prescindido de conflito militar, preparado, como agora, por escaramuças econômicas e diatribes políticas, como tem lembrado o professor Manuel Domingos Neto em seu curso “Estudo do militar brasileiro”.
Mais do que nunca o império precisa de segurança em seu quintal, que compreende tudo – gente, povos, países – que se encontre ao sul do rio grande.
O império não pode dispensar nem a aliança automática de nossas forças armadas nem a subserviência do atual Itamaraty, tão longe estamos dos bons tempos de política “ativa e altiva” de Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Marco Aurélio Garcia, tão próximos estamos da abjeção dos tempos do marechal Castello Branco, quando o general Juracy Magalhães, nosso embaixador em Washington, declarava que “o que é bom para os EUA é bom para o Brasil”.
Não avançaremos na exata compreensão do que seja e implique o golpe de Estado continuado instalado em 2016, e muito menos avançaremos na discussão sobre a estratégia de luta sem nos determos sobre o papel do imperialismo e do capitalismo brasileiro, rentista e dependente, associado ao grande capital financeiro internacional, hoje receoso de cumprir o papel do molusco no choque das grandes ondas contra o rochedo pois este é o conflito que se avizinha entre EUA e China. A busca do desfecho é mais agônica para o império, pois vê o tempo como aliado do fortalecimento econômico e militar do grande adversário e seus aliados, entre os quais se encontra uma Rússia armada de mísseis intercontinentais carregados com ogivas nucleares. Especialistas cogitam de uma alternativa à hecatombe nuclear, que seria uma guerra convencional pelo domínio do Pacífico…
No quadro de hoje, e se não houver alteração na correlação de forças internas, não teremos, sequer, a oportunidade de escolher a forma de nossa inserção no conflito, que, embora sendo dos outros, nos atingirá.
A este quadro internacional ensejador de muitas interrogações do ponto de vista estratégico-militar, soma-se a crise geral do capitalismo aguçada a partir de 2008 com a explosão da bolha imobiliária nos EUA e a quebra do Lehman Brothers corroendo a União Europeia, chegando até nós. O analista precatado não deve ignorar a possibilidade do efeito cascata da anunciada bancarrota da gigante chinesa da indústria da construção civil que entre nós afetou o índice Ibovespa, na medida em que derrubou as ações da Vale. No plano nacional, o dito mercado já trabalha com uma inflação de dois dígitos, com o aumento da taxa Selic, a queda das estimativas do crescimento do PIB (variável entre 1,0 e 0,4% sobre 2020), e, em síntese, com o que os economistas de plantão chamam de estagflação, que nos alcança após mais de dez anos de recessão e desemprego crescente. Os juros crescem pelo segundo mês seguido, e alcançam o patamar de 21,1%, enquanto cai o crédito para as empresas.
Beco sem saída? Não. Se não nos faltarem ânimo e competência para a organização popular, para levar a cabo o mais amplo esforço visando à politização das grandes massas – das quais se afastaram o discurso e a ação da esquerda socialista (principalmente a partir da campanha presidencial de 2002), e dos governos de centro-esquerda, quando confundiram a necessidade tática da aliança conservadora (as “razões de Estado”) com a renúncia estratégica à luta de classes.
*Escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia