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Peçonha zerada

Jobim, sobre as urnas, mata cobra e afaga jaguatirica

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Autor/Imagem:
Armando Cardoso/Especial para Notibras - Foto Valter Campanato

Em meados de 2001, o ministro Nelson de Azevedo Jobim assumiu a presidência do Tribunal Superior Eleitoral. Chegamos juntos ao TSE, cujos ministros, servidores, advogados, membros do Ministério Público, comissionados, terceirizados e jornalistas lotavam os dois andares e mais um anexo da então acanhada sede do tribunal. A lotação máxima ocorria nas noites de terças e quintas-feiras, dias de sessões intermináveis às vésperas das eleições gerais de 2002. Afinal, seria o primeiro pleito com 100% de urnas eletrônicas e com a real possibilidade de um operário chegar ao poder. Não foi um pleito qualquer. Não era uma simples contagem de sufrágios. Ministros, assessores e pessoas envolvidas com os julgamentos do dia tinham apenas hora de chegar. Não conseguíamos deixar o TSE antes das duas da madrugada.

Para não perder tempo, Jobim reuniu a Corte e resolveu criar o jantar interativo e de cotas. O rango era servido na salinha destinada às sessões administrativas. Cada ministro e mais o procurador-geral, Geraldo Brindeiro, dispunham de uma verba mensal ou semanal para cobrir as despesas com a “gororoba” especial. Era uma farra gastronômica, originária de diferentes e nada moderados restaurantes da cidade. Brindeiro nunca deixou de cooperar, mas era um problema para coçar o bolso. Embora pudesse ter direito à nobilíssima sobra, preferia a companhia de alguns “amigos” para refrescar a memória fora das quatro linhas do tribunal. Restaurante de serviço rápido, simples e com um filé acebolado dos deuses, o Faisão Dourado era preferido. A “fuga” normalmente ocorria às quintas-feiras, quando o jantar da corte era mais demorado.

Fugia da corte sempre na companhia aliciante – e também nobre – de representantes de partidos políticos na Justiça Eleitoral: os advogados Torquato Jardim, Eduardo Alckmin, Sérgio Banhos, Admar Gonzaga e José Dias Toffoli, ministro e ex-presidente o STF e do próprio TSE. Abro um parêntese para falar um pouco mais de Toffoli. Com ascensão vertiginosa e inesperada, estava no lugar, na hora e com a pessoa certa no momento em que surgiu a vaga. Foi indicado para o STF em setembro de 2009, assumindo a cadeira deixada pelo ministro Carlos Alberto Direito, que havia morrido no início daquele mês. Advogado nas três campanhas de Lula à Presidência, antes do STF foi subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil e Advogado-Geral da União. Portanto, não ter sido aprovado em provas para juiz acabou sendo um mero detalhe.

Às vezes, tínhamos um pouco mais de tempo, porque, entre a sessão plenária e a administrativa, Jobim conversava com Paulo Camarão, um dos criadores do sistema eletrônico de votação, sobre a movimentação da informática e a implantação do novo software da urna. Era comum, de surpresa, ele perguntar a Camarão se o trabalho para dificultar a “penetração” na servidora havia sido concluído. Na verdade, o que que ele queria saber era se os técnicos tinham sanado os “buracos” que pudessem gerar eventuais fraudes no servidor, que nada mais é do que um computador equipado com um ou mais processadores, bancos de memória, portas de comunicação e, ocasionalmente, algum sistema para armazenamento de dados como hard disks internos ou memória SSD. Ou seja, jamais uma servidora foi assediada nas dependências do tribunal.

Pouco polido, mas de coração proporcional ao seu tamanho, Nelson Jobim, durante uma viagem ao Pantanal, patrocinada pelo então presidente do TRE do Mato Grosso do Sul, estava em um restaurante e viu-se em uma saia justa com um garçom mal humorado que insistia em lhe servir o peixe hipoglós. Sério e sem entender a extensão da oferta, o ministro chegou a pensar em reagir, mas, do alto de seus quase 1,90m, resolveu perguntar que raio de prato era aquele. O garçom, na verdade um ator local, respondeu de forma ainda mais séria: “É pacu assado, senhor”. Ao perceber a gozação, vermelho da cabeça aos pés, Jobim foi obrigado a dar as mesmas gargalhadas do restante da comitiva que participava do jantar. Assim foi e assim é Jobim, um ministro aposentado que nunca fugiu do arranca rabo na Justiça Eleitoral.

Em várias oportunidades, defendeu a urna eletrônica da sanha dos que, desavisadamente, acreditavam (e acreditam) no voto impresso como solução contra fraudes. A exemplo dos ministros de hoje, ele sempre conseguiu mostrar que o inverso é verdadeiro, isto é, se há alguma possibilidade de fraudar o sistema ela atende pela denominação auditagem do voto. Parece bajulação barata ou necessidade de lembrar de alguém que se achou acima da média, mas não é. Convivi com ministros que também “brigavam” para defender a urna eletrônica, entre eles Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence e Gilmar Mendes. Entretanto, faz alguns anos Jobim é convocado pela corte ou por parlamentares convictos da segurança do sistema sempre que o equipamento é ameaçado.

A última estocada nos poucos críticos do TSE ocorreu pouco antes do sepultamento da PEC apresentada pela deputada Bia Kicis (PSL-DF). Durante audiência na comissão especial que discutia a matéria, Nelson Jobim definiu a urna eletrônica com voto impresso como “cruza de jaguatirica com cobra d’água”. Como são dois predadores e podem ser encontrados no cerrado, onde até jacaré no seco anda, deputados e senadores preferiram ouvir Jobim. A pouco mais de um ano da eleição geral de 2022, acharam melhor reduzir a quase zero a peçonha da jararaca do Planalto. Em outubro do ano que vem talvez não haja nem a jararaca.

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