Doce da discórdia
‘Calma, madame. Liberdade religiosa é um bem de todos nós’
Publicado
emCansado da política, resolvi sair pelo menos um dia da rotina. Provisoriamente decidi enveredar por caminhos tortuosos, mas também interessantes. Debutei para a vida nu e, orgulhosamente, em um longínquo subúrbio do Rio de Janeiro. Hoje estou vestido e vivendo na capital da República. Entretanto, foi na periferia que forjei todos os valores de um ser humano de bem. Evolui? Nem tanto. Entre os numerosos exemplos dos mais velhos, jamais esqueci o respeito a tudo que é ou vem dos semelhantes. Aprendi bem cedo que meu espaço termina exatamente onde começa o de outrem. Também ouvi, assimilei e, na medida do possível, repasso para filhos, netos e agregados a máxima de que religião, futebol e política não se discute. Cada um tem sua preferência, embora façam parte de uma grande porção de nossas vidas individuais e coletivas.
Em muitos sentidos, a religião influencia e define a trajetória de um indivíduo e, em se tratando do poder de ação de seus fiéis, no dia a dia da coletividade. Não tenho o dom da verdade, tampouco a primazia do conhecimento. Ao longo do tempo, o que adquiri foram algumas simbologias. A principal delas é baseada no respeito, substantivo masculino que incorpora cuidado, empatia, consideração, deferência e, em alguns casos, temor. Embora esteja mais para leigo, acredito que, para definir uma religião, precisamos antes entender que não podemos partir de noções individuais, predefinidas e tendenciosas sobre a forma como se constrói a crença de um grupo. O mesmo se aplica a Deus, conceito de Ser Supremo presente em diversas religiões monoteístas, henoteístas ou politeístas. Ele é definido como o espírito infinito e eterno, criador e preservador do Universo.
Onipotente, onipresente, único e sinônimo de amor, Deus quer ser respeitado pelo que Ele representa para nós. A tacanha divisão de Deus é apenas mais uma das necessidades humanas. Viemos e voltaremos para o mesmo lugar. No entanto, nada disso nos habilita a tentarmos ser iguais. É visceral o desejo de ser diferente do vizinho, de não aceitar aconselhamentos da doutrina alheia. Infelizmente, somente a nossa presta, somente a nossa é de Deus. As “concorrentes” são do Diabo. Por razões que não merecem análise, a do outro é sempre melhor. A indagação sobre uma eventual evolução após a saída da periferia e chegada à capital não é sócio-econômica. É apenas uma visão conceitual. Será que aprendi a respeitar os valores dos demais? Acho que sim. Todavia, continuo sem entender o inverso, isto é, a razão pela qual nem sempre respeitam os meus.
Acho que a charada é mais ideológica do que religiosa. Como desacredito daquele presidente, logo sou comunista, diabólico, um anticristo. Concretamente, evolui. Porém, involui em outros aspectos. A bem da verdade, não posso assumir essa culpa sozinho. Sendo ainda mais verdadeiro, como ser culpado de coisas que abomino? Ainda que não deva torná-las públicas, é meu direito contestá-las, não achá-las normais. Como disse o ex-jogador Dario Maravilha, o Rei Dadá, não existe gol feio. Feio é não fazer gol. Nada tenho a ver com a vida alheia. Dessa forma, a religião professada por eventuais antagonistas a mim merece tanto respeito quanto a minha. Nem sempre a recíproca é verdadeira. Não importa. Com base no sincretismo brasileiro (fusão de diferentes cultos ou doutrinas, com reinterpretação de seus elementos) e, sobretudo, por questões culturais, procuro frequentar igrejas e templos de variados matizes da fé.
Em um dessas incursões bem recentes me veio “inspiração” para essa narrativa sobre um sentimento que considero dos mais nefastos: a estupidez religiosa. Perdoem-me o nariz de cera, mas tive de ser prolixo para escrever minha história de hoje com mais naturalidade. Por escolha própria, desde a mais tenra idade sou devoto de Cosme e Damião, irmãos gêmeos, que morreram por volta de 300 d.C. Eu e milhões de brasileiros acreditamos que eles foram médicos e que a santidade de ambos foi motivada pelo exercício gratuito da medicina. São considerados protetores dos gêmeos e das crianças. Por isso, o costume de distribuir doces para homenageá-los ou para cumprir promessas feitas a eles. No meu caso, “fi-lo porque qui-lo” e faço porque é espiritualmente prazeroso.
Nada mais do que isso. Nenhuma vinculação diabólica. Faz pouco mais de uma semana resolvi espernear. No dia devotado aos santos, saí às ruas com sacolas edulcoradas para satisfazer meu prazer de quase cinco décadas. Ao oferecer doces para duas crianças acompanhadas de uma jovem senhora com pose de madame, acabei sendo tratado como o demônio travestido de doador de guloseimas. Quase me fazendo engolir os saquinhos, a falsa lady respondeu grosseiramente que ela e os filhos não comem nada doado que venha do Diabo. Não sou rancoroso, mas costumo retribuir imbecilidades com algum aconselhamento. Dessa vez, mudei o tom. Subi nas tamancas e discursei para a meia dúzia de meninos e meninas que aceitaram a carinhosa doação.
“Dona moça, na minha casa todos comem doce de Cosme e Damião. Do mesmo modo, comemos os salgadinhos da cantina da Assembleia de Deus, tomamos o açaí da Igreja Universal, adoramos o pastel de vento da Igreja Católica e não perdemos por nada deste mundo a deliciosa feijoada de São Jorge ou o churrasquinho de Buda. A maldade está no coração das pessoas e não nos doces, comidas e afins”. Aspeei porque, naquele momento, me vi falando em nome de uma silenciosa multidão que não aceita, mas engole a hipocrisia barata de quem chegou à capital, mas ainda não aprendeu que coletividade é sinônimo de pluralidade, de pluripartidarismo, de respeito ao próximo. Ainda vou apanhar por isso, mas não deixo de reagir. Salve São Cosme e São Damião!! Salvem as crianças!! Salve a liberdade religiosa!!
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978