Os fins e os meios
Regra do governo de Jair Bolsonaro é deixar sangrar
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emCarta fora do baralho eleitoral, o ex-ás de ouro Jair Messias Bolsonaro transformou-se com a rapidez de um raio em um desimportante dois de paus baixado em uma canastra de copas. É fato que ele está bem distante da batida. Entretanto, para os apoiadores está tudo normal, tudo sob controle. Acreditam em algo sobrenatural até outubro de 2022. Difícil ocorrer alguma coisa capaz de reverter o quadro absolutamente negativo. E negativo exclusivamente por culpa da inércia e da incapacidade do mito em governar. Talvez nem seja algo de cunho psiquiátrico, mas inegavelmente trata-se de um universo paralelo, criado por aqueles que insistem em avaliar o presidente como um deus. Deuses nos fazem acreditar, pensar e produzir coisas boas. Não é o caso.
Portanto, a recíproca tem de ser verdadeira. É aceitável que o endeusem, desde que aceitem que eu o veja como um deus invisível, incolor e inodoro. Ou seja, inexistente. Não pode ser avaliado como algo crível um presidente de uma república de 213,3 milhões de pessoas permitir que temas corriqueiros virem conflito e se transformem em problemas institucionais. É muito provinciano, para não dizer irresponsável. Refiro-me ao caso criado em torno do absorvente feminino. Ou seja, necessidade básica da mulher, a menstruação, que deveria ser uma exceção, voltou a ser regra. Leviana e grosseiramente, jogou para o Congresso Nacional decidir uma obrigação que é do Executivo. E ainda fez ameaças de menino birrento. Disse que, caso a despesa seja aprovada pelo Legislativo, terá de tirar dinheiro da saúde e da educação.
Resumo da ópera é que, para o presidente da República, não basta o governo sangrar. Infelizmente, o verbo anterior não é apenas questão semântica. É atemporal, temático, um fato. Nada de anormal dentro da anormalidade da atual administração, cujo mandatário só percebeu a gravidade da Covid e a necessidade da imunização quando o país já tinha cerca de 500 mil mortos, resultado do mais absoluto negacionismo. Na verdade, nem sei se ele já percebeu o alcance do caos. O governo agoniza, já recebeu extrema unção, mas, de acordo com a turma do cercadinho, passa bem. Essa é a turma de brasileiros que se veste de verde e amarelo nos dias de manifestações, mas no dia a dia provavelmente usa indumentárias pretas para mostrar o que realmente sente pela pátria: ódio.
É o pessoal do quanto pior melhor. E, convenhamos, torcer contra o próprio país não é patriotismo. Sem análises psiquiátricas ou espirituais mais profundas, me parece um ódio personalizado, contra aqueles que aparecem e aparecem bem. Sem entrar nos méritos jurídico e policial, é assim que avalio a gana contra Lula. É o mesmo rancor e mágoa que a família do presidente tem pelo Sistema Globo de Comunicação. A razão é simples: ele teve sete mandatos de deputado federal e, não por acaso, foi ignorado pela emissora dos Marinhos. Seus discursos e bizarrices em plenário não tinham consistência ou importância jornalística. Sinceramente, o que o deputado Jair Bolsonaro produziu de bom para merecer espaço na Vênus Platinada? E ele não era ignorado somente pela TV Globo.
Os agora queridinnhos SBT, Record, Jovem Pan, Ratinho e Datena também nunca deram bola para sua trajetória. O único programa que lhe dava voz era o CQC, da TV Bandeirantes. A explicação é que era um programa de humor jornalístico. Para quem só admite bajulação e reverência e se vende como a alma mais honesta do Brasil, as críticas da TV Globo são recebidas como perseguição. Os bolsonaros e bolsonaristas esquecem que a empresa criada por Roberto Marinho foi um dos pilares da ditatura, base política, afetiva, emocional e familiar do presidente e seus seguidores. O Brasil, que já foi um país amado por muitos, hoje é odiado por todos. Virou pária mundial. E não por culpa da TV Globo ou de qualquer outra emissora.
O problema do governo Bolsonaro parece de brincadeira, mas é muito sério. Político antigo, ainda não aprendeu que os erros nos ensinam muito mais do que os acertos. A vontade de acertar nos conduz à vitória. Não é o caso do mito, que desdenha dos aconselhamentos, assim como ignora a regra feminina. Me faz lembrar um verso de Clarice Lispector: “A vida não é de se brincar, porque um belo dia se morre”. Como disse o poeta romano Ovídio (e não Maquiavel), os “fins justificam os meios”. No português menos ortodoxo, a frase significa que qualquer iniciativa é válida quando o objetivo é conquistar algo importante. Outro significado da locução de Ovídio é que os governantes devem estar acima da ética para manter ou aumentar seu poder. Nenhum dos dois se aplica ao presidente do Brasil, cuja regra é deixar sangrar.