Carta a Braga Netto
Selva, general. Mas abra o olho, porque ditadura aqui nunca mais
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emSelva! Selva, general!
Inspirado na música “A Carta” de Waldick Soriano, eu ia abrir esta missiva com a palavra “Saudações”. Decidi, porém, trocá-la pelo grito “Selva”, por ser um termo mais apropriado para retratar a defesa que V.S.ª faz do golpe militar de 1964 na nota lida nos quarteis nesse 1º de abril – o Dia da Mentira.
Então, “escrevo esta carta, não repare os senões, para dizer o que sinto” – como canta o saudoso Waldick. E o que é que sinto? Noto que o seu discurso se dirige a um hipotético interlocutor alienado e desmemoriado. O senhor trata os militares nos quartéis e o povo brasileiro como uma cambada de débeis mentais. Só mesmo um político fardado do PL (vixe, vixe, se gritar pega centrão…) teria tal ousadia carregada de cinismo e desfaçatez.
Precisa ter a certeza da impunidade para dizer que a ditadura militar foi “um marco histórico da política brasileira, que nos deixou “um legado de paz, de liberdade e de democracia”. Trata-se de inversão dos fatos, de insulto à história, de uma fraude. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), tal apologia da ditadura é “ato ilícito”, que demonstra “verdadeiro menoscaso” em relação à Constituição e ao estado democrático de direito. Por isso, o MPF pediu a retirada da sua nota do portal oficial do governo federal.
Abrilada de 64
A ditadura militar – diz a petição assinada pelo procurador Pablo Coutinho Barreto – é um “regime antidemocrático, violador de liberdades e contrário à dignidade humana, que vulnera, de forma drástica, os fundamentos da República Federativa do Brasil”.
O procurador tem razão. A execrável “abrilada de 1964”, longe de fortalecer a democracia, rasgou a Constituição: destituiu um presidente eleito pelo voto popular, fechou o Congresso Nacional, abastardou o Supremo Tribunal Federa (STF) e criou uma instância de censura, violando assim a “liberdade e a democracia”.
Trabalhei em vários jornais no Rio de Janeiro, entre eles o Correio da Manhã. Testemunhei o trabalho de censores dentro da redação, eles vetavam a divulgação de notícias dos fatos para manter o povo desinformado. Depois, já no exílio, fui correspondente em Paris do semanário Opinião, que era obrigado a colocar tarjas negras substituindo as matérias censuradas. Mas a censura não se limitou a impedir o papel fiscalizador da mídia, como disse o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso:
– Durante a ditadura – escreveu ele – todas as músicas, todos os filmes e todas as novelas tinham que ser previamente submetidos ao Departamento de Censura. Eleições canceladas, Congresso fechado, sindicalistas perseguidos e presos, parlamentares e professores cassados, estudantes proibidos de se organizarem. Eu vi, general, ninguém me contou, um sargento com dois soldados invadirem uma sala de aula do IFCS da UFRJ, intimidarem a professora e prenderem um colega.
O documento do Pacto pela Democracia, formado por 80 entidades da sociedade civil, também condenou a celebração do regime autoritário imposto pelo golpe militar, que assassinou pelo menos 434 pessoas. Auditorias da Justiça Militar receberam 6.016 denúncias oficiais de torturas, mas outras fontes elevam para mais de 20 mil torturados, por haverem cometido o “crime” de lutar contra a ditadura.
A outra porta
Sua apologia do golpe militar, general, envergonha e humilha as Forças Armadas. O oficial do Exército na inatividade, Marcelo Pimentel, mestre em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, escreveu que “A ordem jurídica estabelecida pela Constituição Federal de 1988 define claramente o lugar social e institucional do militar e das Forças Armadas, onde devem atuar, funcional e politicamente, sempre de acordo com os princípios “organizacionais” da hierarquia e da disciplina”.
As Forças Armadas, integradas por militares ativos e inativos, não podem tomar partido, “devem ser politicamente neutras, ideologicamente imparciais, apartidárias em sentido amplo, funcionalmente isentas, essencialmente profissionais e estritamente constitucionais” – pondera Marcelo Pimentel.
Já não se fazem militares como o general Peri Bevilacqua, aposentado compulsoriamente pela ditadura como ministro do Superior Tribunal Militar por criticar o AI-5. É dele a conhecida frase lembrada por Pimentel de que “quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina sai pela outra”. Com sua nota, general, o senhor está abrindo a “outra porta”.O mestre em Ciências Militares conclui:
– “Por tudo isso, é muito preocupante que, na segunda década do Século XXI, generais comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, em conjunto com o Ministro da Defesa, também general, publiquem “ordens do dia” versando sobre aqueles eventos – o Golpe e a Ditadura”.
General, “é simples assim, um manda e outro obedece”. O senhor está obedecendo ordens do Capetão, de quem quer ser o vice. Seu discurso – avaliam alguns analistas – é o anúncio da preparação de um golpe militar, uma ameaça, caso os resultados das urnas lhe forem desfavoráveis. Se a ditadura nos deixou “um legado de paz, de liberdade e de democracia”, por que não repetir a experiência?
Coro de cigarras
Sei que estas linhas não chegarão ao seu destino e serão lidas até o fim apenas por quatro gatos pingados civis, seletos e fiéis. No entanto, escrevo assim mesmo, só para fazer coro com as cigarras que anunciam a chegada da primavera.
O livro “Luta, Substantivo Feminino” lançado em 2010 contém as histórias de 45 mulheres mortas ou desaparecidas e o testemunho de outras 27 que sobreviveram à tortura. Essas mulheres que hoje estão chegando aos seus 80 anos deram seus depoimentos.
– Elas precisam falar. Como cigarras, seus cantos, suas falas nos troncos das inúmeras árvores espalhadas pelas florestas, matas e campos estão sendo ouvidas. Tempo chegará em que faremos um grande coro, um coro de todas as cigarras e incomodaremos aqueles que teimam em nos esquecer – comentou a pesquisadora e professora da UFF, Joana D´Arc Fernandes na resenha que escrevi sobre o livro há doze anos.
No entanto – prossegue ela – “diferentemente das cigarras, não cantaremos para morrer, cantaremos para louvar e festejar um novo momento em nosso país. Um momento sem cinismo, onde não se falarão mais no “direito à memória” e nem sobre direito a nada. O discurso do Direito já carrega em si o discurso da perda. Se exige o que se perdeu. Cantaremos somente a vida e a possibilidade de verdadeiramente sonhar”.
Ouviu bem, general Braga? Aqueles militares democráticos, que seguem os exemplos do general Peri Bevilacqua e do marechal Rondon e se opõem à barbárie, já ouvem o coro das cigarras. Renuncie ao golpe, enquanto é tempo. Ouça o Waldick Soriano: “Renunciar, seria a solução”. Abaixo a ditadura! Ah, muito obrigado por publicar suas – digamos assim – ideias, o que nos deu a oportunidade de contestá-las.