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Óbvio ululante

Se nada mudar no pós-eleição, o que sobrará?

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo

Duvidosamente se atribui a Abraham Lincoln, o 16º. presidente dos Estados Unidos a autoria da célebre citação “Quer conhecer o caráter de uma pessoa? Dê-lhe poder”. Partilhadas nas redes sociais em variados idiomas e normalmente lembrada por ditos honestos pressionados a criticar ditos desonestos, tais palavras começam a ter sentido cristalinamente verdadeiro quando proferidas por meio de metáforas. São formas imprecisas de dizer exatamente aquilo que se quer. Irrelevante a autoria da frase. Importante é que a referência seja sempre a Lincoln, mandatário que, tendo poder quase absoluto, jamais abusou dele. E, conforme os historiadores, quando abusou foi para a misericórdia.

Nos dias atuais, a ampliação da expressão é o que preocupa todos que pregam a paz e prezam pela liberdade. Atualizada pelo escritor baiano Aislan Dlano, a locução ganhou um adendo bem interessante: “Quer conhecer uma pessoa dê poder a ela, mas se, em si, quiser verdadeiramente conhecê-la, retire o poder dela”. Não é mera coincidência a quadra que vivemos, na qual o discurso de um dos protagonistas da disputa eleitoral se mostra cada vez mais distante de sua realidade política. Sentir o estômago embrulhado apenas por ter de seguir a Constituição do país é o mesmo que abominar, desprezar, sentir nojo dos brasileiros que, por razões diversas, preferem não rezar de acordo com as normas de sua cartilha.

Lendo Mahatma Ghandi, desde menino aprendi que temos de ser o espelho das mudanças que propomos. Se queremos mudar, precisamos começar por nós mesmos. Antes da fase adulta, experimentei no seio familiar a tese de que quem não é capaz de governar a si jamais conseguirá governar os outros. Convictamente com capacidade, mas supostamente com liberdade para expressar minhas teimosas posições políticas contrárias à tirania, estou convencido de que nosso futuro dependerá daquilo que fazemos no presente. E o que temos feito para que nos sintamos orgulhosos nos próximos anos, décadas, séculos ou encarnações? E o que deixaremos como pilar para as gerações que nos sucederem?

Se nada mudar, o que sobrará do Brasil? Provavelmente uma nação corroída, dividida, desumana, incoerente e com uma população desprovida de princípios, fraca de caráter e absolutamente governada a partir de cercadinhos insubordinados e ativamente afinados com os usurpadores do poder. Não tenho mais medo do que nos espera, na medida em que o óbvio se tornou tão ululante que votar deixou de ser o principal passo para a democracia garantidora de liberdades. A moda agora é separar o eleitorado nacional entre bons e maus. Não sei qual é o critério, mas adoraria descobrir um amigo que conheça um amigo que já ouviu de outro amigo o que, na prática, significa essa decantada “guerra” do bem contra o mal.

Será que essa história representa um retorno a 1964? Fiquem tranquilos, pois prometi a mim mesmo jamais voltar a fazer qualquer referência à Redentora, eufemismo para o golpe militar daquele ano. Refiro-me simbolicamente ao filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, considerado um marco do cinema novo. Naquela época, também 1964, o cineasta baiano tratava de duas formas de contestação social diante do descaso das autoridades, prejudicando a vida dos sertanejos: o messianismo e o cangaço, que, respectivamente, representavam Deus e o Diabo.

Guardadas as devidas coincidências, o messianismo é justamente a crença na vida (ou no retorno) de um enviado divino, um libertador, um messias em defesa das causas de um povo ou grupo oprimido. Quanto ao cangaço, o poder também corrompeu seus representantes. Voltando a tal “guerra”, será que sou do mal porque não consigo votar em quem se diz do bem? Será que aqueles que odeiam a democracia formam no time do bem? Sei lá. O que sei é que tanto o suposto bem quanto o apelidado de mau tiveram o mesmo poder (o de presidente) e não aproveitaram. Por isso, entre Deus e o Diabo na forma como são apresentados, prefiro minha fé. Essa é séria, confiável e inabalável.

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