País acéfalo
Transparência movediça do governo é piada de mau gosto
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emDesde os tempos do Império, a cronologia política do Brasil é contada diária, semanal, mensal e anualmente em verso, prosa e, às vezes, em páginas policiais. Era, deixou de ser. Com o advento da república do feudalismo mitológico, a história que deveria ser pública deverá sofrer um lapso de 100 anos. Pelo menos é o que estabelece a prática democrática do governo eleito com o discurso da transparência a qualquer custo. Aliás, foi nessa transparência que o líder do modismo golpista chafurdou desde a campanha. A bem da verdade, é bom lembrar que ele herdou boa parte dos votos conquistados em 2018 por conta da poranduba relativa a administrações anteriores. É bom que todos se lembrem, porque ele (o líder) fez questão de esquecer o que foi dito.
Interessante é que o rei do passado (aquele que incomoda os patriotas) lamentava, esperneava, prometia, mas nunca ameaçou ou concretizou ameaça alguma, principalmente essa de confiscar o direito constitucional de dar ao povo ciência de tudo o que acontece no castelo dourado, inclusive o que é pouco ou nada republicano. Decretar sigilo de um século sobre o dia a dia do Planalto é o mesmo que passar recibo do quanto é movediça a areia despejada a cada minuto do horário comercial da Presidência da República. É uma piada de mau gosto, mas trágica para quem gosta de tudo às claras. Para aflorar o medo de afundar, basta imaginar o que fica no terreno instável durante os serões palacianos. Melhor evitar os riscos da imaginação e nem pensar.
O fim do discurso da limpidez administrativa não é novo. A opacidade ocupa o lugar da clareza sempre que a oposição vira situação. Por mais ambígua e duvidosa que seja, a oposição normalmente é aceita porque faz parte do jogo mentiroso da política nacional. Conforme os arranjos – a maioria escusos -, é mais fácil cuspir no prato que comeu e ficar do lado de quem agora oferece poder. Como dizia um famoso político da antiga Arena, às favas com os escrúpulos. É bem por aí. É assim que agem aqueles que, ao primeiro sinal de favorecimento pessoal, demonstram dúvida ou hesitação sobre se adequar ou agir de determinado modo. Sem rodeios, falta-lhes ética, consciência moral, integridade.
Se achar a última bala do pacote é outro sinal de esquecimento do discurso moralizador e terrivelmente a favor da honestidade a qualquer preço. Também ficou nos palanques a essência do slogan Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Acima de tudo e de todos apenas um: o mito. Mesmo sem autoria, a última prova de que a cena política no Brasil de hoje não comporta oposição foi roteirizada nos porões do Palácio do Planalto. E para que autor? O governo fracassado e sem votos próprios determinou a retirada do palco do Congresso de todos os projetos de lei apresentados por parlamentares e partidos de esquerda. E não importa que sejam bons ou muito bons. A ordem é manter sem luz o túnel da oposição.
Um novo decreto estabelece que será furado o tambor que bater para propostas que não sejam originárias dos “irmãos” do Centrão. E dizer que esse mesmo grupo até bem pouco tempo era demonizado publicamente por figuras que agora atiçam o fogo fisiológico e demoníaco do bloco que adora a proximidade, as vantagens e os privilégios do poder. Quanto as mazelas, o povo, também chamado de eleitor, que se lasque. Essa teórica escuridão do túnel da esquerda é mais um dos esquecimentos equivocados de sua excelência. É bom lembrar que, assim como as próteses penianas, os comprimidos de Viagra e o leite condensado, por enquanto nada escapa aos olhos atentos da mídia comunista, que, quer o rei queira ou não, atende à pluralidade do país, dos poderes constituídos, consequentemente do povo.
Em outubro, certamente os mais atentos concordarão com a tese ulyssista de que os políticos brasileiros são piores a cada legislatura. O problema é que políticos não caem das árvores. Nós os escolhemos. Votem bem, votem certo. Lembremo-nos, por exemplo, daquele senhor escanteado desde a posse e que agora surge como candidato a senador pelo Rio Grande do Sul. Vice e conhecendo tudo dos porões, ele não só negou a ditadura, mas tripudiou publicamente dela. Não tenho qualquer afinidade musical ou artística com a pop star Anitta, mas, acima e embaixo, concordo com a análise de que o Brasil é de todos, embora atualmente apenas uma minoria se ache dona. Por isso, peço licença à moça que tanto critico para repetir sua já célebre frase: “Aí, garoto, vai catar o que fazer, vai”. Aproveito para reiterar que o país está acéfalo.