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Os estragos

Drones espalham cada vez mais agrotóxicos no campo

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Autor/Imagem:
Júlia Rohden/Via Repórter Brasil - Foto Reprodução

Uma máquina corta o céu da lavoura de cana de açúcar, a cerca de 3,5 metros do chão, gerando um zumbido alto e constante. O aparato, no caso, é um drone, que despeja agrotóxicos na plantação enquanto é controlado por um operador via aplicativo no celular. O equipamento é capaz de voar por cerca de dez minutos e pulverizar um hectare, o equivalente a um campo de futebol, antes de voltar para a base para trocar as baterias e ser abastecido com mais químicos. A cena, registrada em uma fazenda de Olímpia, interior de São Paulo, está disponível no YouTube, onde vídeos do mesmo tipo são cada vez mais comuns: drones têm sido utilizados na pulverização de agrotóxicos em plantações pelo Brasil.

Segundo apuração da Agência Pública e da Repórter Brasil, há um crescimento na utilização de drones para pulverização aérea de pesticidas, com fazendeiros comprando as máquinas ou alugando o serviço de empresas terceirizadas. “Na agricultura, o uso do drone começou principalmente com o monitoramento de imagens, mas hoje a grande demanda é a pulverização”, avalia o pesquisador da Embrapa Lúcio André de Castro Jorge. De acordo com Castro Jorge, há duas tendências: aumentar o tamanho dos drones (e sua capacidade de armazenar agrotóxico) e atuar com enxame (quando o operador utiliza vários aparelhos em uma mesma fazenda).

A aplicação de agrotóxicos por drones já é realidade em Luz, município do interior de Minas Gerais com 18 mil habitantes. Paulo Zacarias Ferreira é dono da RPX Agrodrone, empresa com cerca de 10 funcionários sediada na cidade e que presta serviços em lavouras de soja, milho e cana de açúcar. “Hoje quem tem crédito compra o drone parcelado, faz curso de dois dias, no máximo, e acha que está pronto para pulverizar. O pessoal está pensando muito mais em retorno financeiro do que em qualidade de aplicação”, avalia. “Esses dias uma pessoa me procurou porque alguém foi pulverizar a lavoura ao lado, fazer uso de herbicida, e matou a lavoura de café dele. Tem muita gente despreparada”, diz.

O crescimento do mercado levou o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) a emitir a Portaria 298, de setembro de 2021, que criou regras específicas para operação de drones com agrotóxicos e afins (adjuvantes, fertilizantes, inoculantes, corretivos e sementes). Os operadores das chamadas aeronaves remotamente pilotadas (ARPs) devem ser registrados no ministério, fazer curso de aplicação aeroagrícola e apresentar relatórios mensais de atividades. A portaria também proíbe pulverização a menos de 20 metros de povoações, cidades, agrupamento de animais e mananciais de captação de água.

Usada em diversas culturas — como eucalipto, café, soja e frutas — a pulverização por drone também pode gerar a chamada “deriva”, quando o veneno desvia do local onde deveria ser aplicado, empurrado por exemplo pelo vento. De acordo com o professor do departamento de Engenharia Rural da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Ulisses Antuniassi, a deriva da pulverização via drone é menor que a realizada por aviões, equivalente a cerca de um quarto, mas o dobro da realizada por equipamentos terrestres.

Apesar de empresários do setor ressaltarem que a deriva é muito menor em comparação ao avião, o tema preocupa organizações da sociedade civil. Para a advogada da ONG Terra de Direitos, Naiara Bittencourt, a legislação deveria seguir o princípio da precaução e prevenção. “Há dados contundentes em relação à deriva do avião, porque [o método] é aplicado há bastante tempo e muitos estudos foram realizados. A pulverização por drone, como é recente, ainda não tem estudos consolidados”, pondera. “Se não sabemos o risco daquela forma de aplicação, então deveriam ser tomadas medidas como estabelecer distância maior de comunidades e mananciais de água”, avalia Bittencourt.

A deriva da pulverização por avião já causou uma série de graves problemas, como a intoxicação de indígenas em Caarapó (MS), de crianças da escola de Rio Verde (GO) e da comunidade rural em Araçá (MA). A prática foi proibida em várias cidades e no Estado do Ceará, apesar de o lobby do agronegócio tentar reverter as decisões. Em 2020, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) moveu uma ação que questionou a constitucionalidade das leis em 15 municípios e no Ceará, alegando que as prefeituras não poderiam legislar sobre o tema, regulado por lei federal. A ação aguarda votação no Supremo Tribunal Federal (STF).

Em Marechal Cândido Rondon, no Paraná, próximo à fronteira com o Paraguai, a pulverização aérea é proibida desde 1999, quando a lei 3.226 vetou a prática. No entanto, um ajuste feito em março de 2021 pode mudar essa realidade, abrindo uma exceção para o uso de drones.

O vereador Vanderlei Sauer (DEM) propôs a alteração, mas admite que o drone ainda não é usado pela falta de quem ofereça o serviço. “Tivemos solicitação pelos próprios agrônomos, porque os municípios em nossa volta permitem o uso e no nosso município não era permitido. O drone, além de ter deriva menor, usa menos agrotóxico do que o método convencional e faz aplicações pontuais”, defende.

Com predominância da agricultura familiar e propriedades com cerca de 25 hectares, os trabalhadores rurais do município paranaense pressionaram para proibir o uso de avião. O pesquisador e coordenador de pós-graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável da Universidade do Oeste do Paraná (Unioeste), Wilson João Zonin, acompanhou o debate na época e observa a mudança na lei com ressalvas. Zonin lembra que o Brasil vive um recorde de aprovação de agrotóxicos no governo Bolsonaro e que o Projeto de Lei 6.299, aprovado na Câmara e que aguarda votação no Senado, pode facilitar e flexibilizar o registro de novos pesticidas. “O drone pode trazer benefícios, a tecnologia é bem vinda, mas deveria ser restringida à coleta de imagens e, se for o caso, ao uso de produtos biológicos que não tragam prejuízos para o meio ambiente e para os vizinhos. Não vejo progresso, apenas aumento do risco de contaminação e retrocesso na nossa legislação municipal”, conclui.

No noroeste do Espírito Santo, Nova Venécia também alterou a lei municipal que há dez anos proibia a pulverização de agrotóxicos por aeronaves. A mudança foi feita pela lei 3.627, aprovada de forma unânime pelos vereadores em dezembro de 2021. “Os drones já estão sendo usados. Começou pelos maiores produtores e, onde antes demorava semanas [para realizar a pulverização de agrotóxicos], agora o drone faz em três dias”, comenta o autor da lei, vereador Roan Roger Marques (MDB).

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Agricultores Familiares de Nova Venécia, Wasley Darós Cesconetto, avalia que, para os trabalhadores, pode haver a vantagem de não entrar em contato com os agrotóxicos, como acontece quando carregam o produto nas costas e aplicam de forma manual, mas teme que a facilidade do drone incentive o uso de mais pesticidas. “Para a agricultura familiar, comprar drone não é viável e às vezes nem alugar, porque são áreas pequenas. Para a agricultura familiar não há tanta vantagem”, diz.

Os produtores de alimentos orgânicos são críticos à alteração da lei municipal. “Quem trabalha com orgânicos tem as regras a seguir dentro da produção. E não tem pesquisas o suficiente sobre a deriva do drone”, afirma Pedro Paulo Colonna, assentado da reforma agrária e integrante da Associação Veneciana de Agroecologia.

O professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) que coordena o Grupo de pesquisas de tecnologia de aplicação utilizando veículos aéreos não tripulados, Edney Leandro da Vitória, relata que em suas pesquisas não observou deriva acima de 30 metros com uso de drones. “Minha preocupação é a disseminação por pessoas não qualificadas, mesmo com a resolução do Mapa. Como a fiscalização é ineficiente, tem muita gente vendendo serviços de má qualidade. E isso acaba queimando uma tecnologia que tem tudo para dar certo”, afirma.

Assim como em Nova Venécia e Marechal Cândido Rondon, em Luz também há uma lei municipal que proíbe o lançamento de agrotóxicos por aeronaves. O drone se encaixa como aeronave, chamado pelo Mapa de “aeronave remotamente pilotada” e pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) de “aeronave não tripulada”. Paulo Ferreira, da RPX Agrodrone, alega que a lei surgiu em resposta aos problemas causados pela deriva do avião. “Mas, quando foi feita, não existia o drone”, comenta. “Até foi bom você ter me lembrado disso para conversar na Câmara dos Vereadores, porque precisa mudar”, emenda.

No Brasil, há 2.223 drones aeroagrícolas registrados na Anac. Apesar da grande quantidade de drones, existem apenas 19 prestadores de serviço com CNPJ aptos para operá-los no cadastro do Mapa. O registro é uma obrigação prevista na portaria publicada em setembro do último ano.

Para Naiara Bittencourt, da Terra de Direitos, um dos pontos críticos é a fiscalização dessa frota em todo o país. Ela questiona se haverá controle por parte do Mapa e da Anac em relação ao mercado crescente dos drones. “Quem vai fiscalizar de fato se tudo está adequado? Se a bula está adequada, se era para aquela cultura, se estava de acordo com a condição meteorológica, se estava de acordo com a distância mínima?”, pergunta.

Lúcio André de Castro Jorge, pesquisador da Embrapa, aponta que algumas das grandes fazendas do Mato Grosso têm equipe própria para atuar com drones, tanto no monitoramento, quanto na pulverização. Já os pequenos e médios agricultores costumam contratar os prestadores de serviço, que deveriam atender às regras estabelecidas pela portaria do Mapa. “Efetivamente tem muita, mas muita gente que nem registro do drone tem”, afirma Castro Jorge.

Além disso, o cadastro de drones aeroagrícolas da Anac não diferencia os destinados à pulverização de agrotóxicos dos utilizados em outras atividades, como no monitoramento da lavoura. Questionado sobre a fragilidade do registro, o ministério ressaltou que ele só é obrigatório para os drones de aplicação de insumos (fertilizantes, agrotóxicos, sementes) e que o cadastro não engloba os drones da classe 2 (com peso máximo de decolagem entre 25 kg e 150 kg), que ainda estão sendo certificados pela Anac. “Muitos operadores aguardam esta autorização da Anac para proceder ao registro no Mapa. Da mesma forma, como o registro pelo ministério começou no final do ano passado, pode ser que alguns operadores ainda não tenham iniciado o processo”, informou a assessoria de imprensa da pasta.

Em resposta à reportagem, o Mapa informou ainda que “as ações de fiscalização ocorrem a cargo da SFA (Superintendências Federais de Agricultura) — cada Superintendência executa conforme sua programação ou mediante denúncias. Ainda não foram programadas ações específicas, sob coordenação da Divisão de Aviação. Caso o operador não esteja operando em acordo com a legislação, está sujeito a multa, suspensão ou cancelamento do registro”. A reportagem solicitou, via Lei de Acesso à Informação, os relatórios de operação que deveriam ser disponibilizados mensalmente no Sistema Integrado de Produtos e Estabelecimentos Agropecuários (Sipeagro), conforme previsto na portaria. Contudo, o Mapa informou que ainda não recebe os documentos via sistema e que as informações estão descentralizadas em cada Estado.

Já a Anac afirmou que “a fiscalização sobre as operações com drones é incluída no programa de vigilância continuada, e as denúncias recebidas são apuradas na esfera administrativa de atuação da Agência, de acordo com as sanções previstas no Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/86)”.

Uma nova medida da Anac, que deve ser publicada no início do segundo semestre, vai simplificar a regulamentação dos drones classe 2. “Com essa regulamentação, já há movimentos para as empresas criarem drones de pulverização de 100 litros”, aponta o pesquisador da Embrapa Lúcio André de Castro Jorge. Ele dá o exemplo de produtores de algodão no Mato Grosso, com propriedades de 100 a 200 mil hectares, que têm demanda por drones armazenando acima de 50 litros de agrotóxico.

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