Realidade atropela fantasia
Fogo baixou, mas não há mais clima de fondue no Planalto
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emA pouco menos de 100 dias de uma das mais chatas eleições presidenciais das duas últimas duas ou três décadas, muita água ainda há de rolar por baixo da ponte. Entretanto, independentemente do volume, dificilmente essa água mole será capaz de bater e furar a pedra dura em que se transformou uma das candidaturas. Pelo contrário. O mais provável é que fure ainda mais o balde já rombudo da outra. Os fatos e os números desses dois dias falam por si. Preso, o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, já foi solto, mas não inocentado. Da mesma forma, o governo que ele representou continua encalacrado até a medula com as atitudes pastorais de sua nada republicana gestão. E, como ele mesmo afirmou em um áudio vazado, com aval do chefe maior e do seu entorno.
É ruim para o candidato pregado ao poder e escudado no fracassado discurso da probidade acima de tudo? É péssimo, principalmente porque o Deus que pensa e quer bem a todos parece tê-lo abandonado. Os dados da pesquisa de um renomado instituto atestam que, apesar das vãs tentativas de desacreditar tudo que seja contrário ao principal inquilino do Palácio do Planalto, um postulante só sobe e, consequentemente, o outro desce ladeira abaixo. Há quem diga que aquele candidato do tom sempre ameaçador não aceita interferências. Por isso, insiste com declaratórios, alocuções e narrativas exclusivamente voltados para o eleitor elitizado, casca grossa e antidemocrático. Os pobres, a massa nordestina e povo das periferias não são ouvidos, tampouco visitados. Estão literalmente esquecidos.
Talvez a pedido de marqueteiros afins, o mito acabou não percebendo que o eleitorado brasileiro é composto de perfis, matizes e comportamentos divergentes, mas com sonhos bastante convergentes. Quero dizer que, ao contrário do que imaginam os tais marqueteiros familiares, pobres também votam em ricos e vice-versa. Não fosse assim, um ex-operário não teria chegado ao poder. O que todos querem é a solidez político-administrativa. Pois bem, a pesquisa divulgada nessa quinta-feira (23) mostra que quem não se mostra não é visto.
Especificamente no Nordeste, Luiz Inácio tem uma vantagem superior a 30 pontos percentuais sobre Jair Messias. Em Minas Gerais, segundo maior colégio do país, a diferença é parecida. É pouco ou é muito? Não sou do ramo, mas entendo que é suficiente para uma vitória expressiva já no primeiro turno. E não adianta o jus sperniands. Nessa altura da competição eleitoral, também parece inócuo defender o pastor Ribeiro e criticar o juiz que ordenou sua prisão. O estrago, que não foi inventado, é fato consumado. Embora tenha se falado muito sobre a cara no fogo, é óbvio que a lareira arrefeceu, mas sua chama continuará incomodando – e muito – até outubro. Em resumo, não há mais clima de fondue nos palácios do Planalto e do Alvorada.
Rebatendo um dos filhos do clã, o instituto em questão realmente faz pesquisa, não torce. Seria bom que ele pudesse convencer o pai e os irmãos a serem mais realistas. Sem entrar no mérito, elogiar publicamente uma juíza que fez tudo que pode para manter a gravidez de uma criança estuprada não é de bom alvitre. Pior é fingir que escancarar as portas e o cofre do Ministério da Educação para pastores evangélicos loucos por dinheiro não era do conhecimento de sua excelência. Em áudio tornado público, o próprio ministro afirmou que o livre acesso dos pastores derivava de um pedido direto do presidente da República. Não é nenhuma invenção da imprensa comunista.
Onde quero chegar é simples. Para um governo que propaga a honestidade como produto de exportação, está claro que o desânimo é autoexplicativo. Por tudo isso, nunca é demais lembrar que uma mente adestrada tem o controle de si e o equilíbrio dos sentidos, dos gestos e dos passos. Aportugesando a metáfora, os edifícios só são seguros com alicerces sólidos. Não lembro de quem, mas li um dia desses uma frase lapidante. Com a devida licença do autor, restam poucas dúvidas de que “a realidade começa a atropelar a fantasia bolsonarista”. E tudo isso apenas uma semana após os assassinatos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira e a pouco mais de 100 dias de uma eleição chata, mas que deverá sepultar de vez a ideia de um Brasil que não queremos mais faz 37 anos.