Brasil à deriva
Debochar da democracia é endossar a farsa política
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emFato incomum entre os apresentadores de televisão, manifestações políticas explícitas contra candidaturas podem ter efeito devastador. As implícitas são mais comuns. No encerramento do último Domingão, Luciano Huck mandou um recado curto e grosso para Jair Messias e apoiadores. Citando a criação da carta em defesa do país e do processo eleitoral, assinada por várias entidades do país e por quase 1 milhão de pessoas, Huck lembrou que a “arte e a democracia sempre andaram juntas nas defesas das liberdades”. Disse também o que repito em minhas narrativas, embora com palavras diferentes. “Pensar diferente em muitas questões é a base da democracia. Pensar diferente não torna ninguém inimigo de ninguém. Numa democracia, precisamos garantir que todas as vozes sejam ouvidas, como tem sido desde a redemocratização do Brasil”.
E saibam quantos se interessam pelo assunto que, mesmo veladamente, lá atrás o apresentador sugeriu voto em Bolsonaro. Águas passadas. Importante é o mea culpa. Luciano Huck não declarou voto, mas seus posicionamentos são claramente na direção da terceira via. E daí? Desnecessário saber sobre sua escolha. Relevante é ter a certeza de que o caminho que defende é o da democracia. Parafraseando o apresentador global, precisamos garantir que o resultado da eleição seja respeitado. Recado dado, recado entendido, mas certamente recado ignorado. Apesar da preocupação com a carta pela liberdade, os bolsonaristas, tendo o mito à frente, continuam se achando acima do bem e do mal. Na verdade, têm certeza de que são diferenciados.
Mais do que isso: não têm vergonha de se mostrarem superiores. Felizmente, não é que demonstram as pesquisas de intenção de votos. Para a maioria expressiva de eleitores, um novo ciclo de Jair Messias seria desastroso para o futuro do país. O fato concreto é que, no Brasil da mal querência, ex-presidentes da República, ex-ministros de Estado, ministros aposentados do Judiciário, políticos de ontem e de hoje, artistas, além de empresários (banqueiros) sérios, robustos e detentores de cacife econômico capaz de promover estragos em qualquer administração pública ou em candidaturas perversas, decidiram se unir contra a escalada do besteirol bolsonariano.
A ordem é se manifestar opostamente às reiteradas falas contra as urnas eletrônicas e contra o Estado Democrático de Direito. Nada mais salutar do que trabalhar pela defesa da democracia, bem maior da sociedade brasileira. Nessa reunião de “notáveis” para conter a sanha ditatorial do mito, paradoxalmente uma das vozes mais eloquentes veio de um homem público contido e de poucas palavras. Magistrado acostumado a falar apenas nos autos, refiro-me a um cidadão que, quando resolve falar, não poupa elogios ou críticas ao antagonista. Sua verborragia varia conforme o merecimento do interlocutor. É o caso de Celso de Mello, ministro aposentado do STF.
Antecipando-se ao ato convocado para esta quinta-feira, 11 de agosto, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Mello diz que a única resposta possível do povo brasileiro diante das contestações ao sistema eleitoral por parte do chefe do Executivo “é insurgir-se contra as tentações autoritárias e as práticas governamentais abusivas que degradam, deformam e deslegitimam o sentido democrático das instituições e a sacralidade da própria Constituição”. Após a erudição oportuna e bem posta, melhor seria encerrar a narrativa e aplaudir Celso de Mello de pé. Não sem antes registrar que o respeitado ministro rotulou Bolsonaro de “político menor”.
Além disso, acusou o presidente de “buscar permanecer na regência do Estado, mesmo que, para concretizar-se, esse propósito individual seja transgressor do postulado da separação de poderes e revelador de uma irresponsável desconsideração com as instituições democráticas de nosso país”. Também assinei a carta e assinaria novamente se houvesse necessidade. Não há. Em nome das massas, milhares de artistas, formadores de opinião e anônimos firmaram posição pela democracia. E assim agiram mantendo suas preferências partidárias. Mais cedo ou mais tarde, os que se omitiram debochadamente passarão para a história como suicidas conscientes ou – o que é pior – como cúmplices da maior farsa política que o Brasil já experimentou.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978