Páginas viradas
Pi, letra grega, chama Themis para pacificar os comunicadores
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emJosé Escarlate, vermelho no nome, mas verde, amarelo, azul e branco no sangue, mago com os dedos no teclado de uma velha Remington, escreveu para Notibras em seus últimos anos de vida. Dono de pseudônimos de sotaque russo e lusitano, hoje ele escreve para os anjos o Terceiro Testamento, baseado no que viu, leu e ouviu (com a permissão de Ari Cunha) nas festas da alta sociedade brasiliense. Este texto é uma tentativa de homenagear a sua memória, escrita em Páginas Viradas, livro que, do sonho de editar, virou pesadelo.
Vamos lá. Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto. Baiano burro garanto que nasce morto. Palavras de Dorival Caymmi. Testemunhei isso. Não foi em um domingo no parque, enquanto caminhava contra o vento, sem lenço ou documento, saboreando o mel de uma abelha-rainha. Foi na W-2 Sul, na curta escadaria que dava acesso ao antigo Diário de Brasília.
Dirno Pires costumava atrasar os salários dos funcionários, mas mesmo assim havia gente que ficava perambulando pela redação, pela fotografia, pela paginação, oferecendo gratuitamente uma ajuda em troca da garantia de emprego numa eventual vaga que surgisse. Valia de tudo. Até de ilustrador, pois o traço dele é quase tão perfeito quanto o de um futuro presidente do Sindicato dos Jornalistas, que desenha aves em preto e branco mas que transbordam, aos olhos de quem vê, os mais diferentes matizes.
O emprego não veio na curta vida do jornal de Dirno. Mas criou-se uma tríade. Magro e de estatura mediana, cabelos da moda quase nos ombros, o conterrâneo de Caymmi estava descendo a escadaria, cabisbaixo, quando um até hoje admirador dele, disse, olho no olho, para que levantasse a cabeça porque o martírio estava com os dias contados. Bastaria que ele, o caçador de emprego, aceitasse a condição de faz tudo na Assessoria de Imprensa de uma secretaria do Governo do Distrito Federal. A resposta foi positiva. “Estou pronto”, disse ele ao seu garantidor do ganha pão. E completou: “Começo hoje?”. Ouviu de volta um ‘sem pressa’ dos açodados “Amanhã te levo lá”.
Foram. Apresentadas as partes, o samaritano que nunca negou apoio, despediu-se. A caminho do Setor de Autarquias Sul, parou na rodoviária, comeu um pastel e bebeu um caldo de cana com a consciência do dever cumprido. Mas ao longo do tempo criou-se uma tríade como o pau que nasce torto. Foi o que lhe contaram numa das vésperas dos festejos natalinos seguintes. E com aquele que serve, todos se serviram. E assim o fazem até hoje.
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Resgatar o nome de Escarlate não é apenas lembrar de um craque nas pretinhas, mas enaltecer os amigos de sempre, particularmente a amizade, conceito que deveria transcender a vida física. Zé era um desses que não ficava amarrado à matéria, ao ter, ao possuir, como uma erva parasitária. Sempre usou a inteligência para perceber que, maior do que os lucros e os interesses, há a gratidão. E esta é irrecuperável quando nos tocamos que velhos amigos hoje nos olham por cima.
É triste abrir a janela do quarto e notar que o livro que já foi dividido com leitores do coração está esquecido num canto de um gabinete refrigerado à sombra das palmas de um buriti, mas sombrio pela falta de amizades sinceras, despretensiosas e sem parceria. Não se cobra aqui retorno de amigo algum. No entanto, sou compelido a lembrar que, em outros tempos, a outra tríade – a que manteve a linha reta -, foi mais do que amiga. Foi companheira e, sem modéstia, interveio em uma situação pessoal para lá de desesperadora. Fez-se por merecimento. Ou seja, jamais imaginou-se cobrar nada. Todavia, também pode-se ponderar pedir o que poderia ser um tratamento menos belicoso.
A certeza corrente é a de que nunca trocaria meus amigos, minha vida, meus cabelos brancos, minha barriga saliente e minha relativa e, às vezes, ácida eloquência, por nada. Coisas da idade. É mais fácil ser positivo conforme a gente envelhece. De baianos, piauienses e paraibanos, a mineiros, goianos, paulistas e cariocas, as amizades jamais se dissiparão. Como pregou – e prega – Milton Nascimento, elas são guardadas e eternizadas do lado esquerdo do peito.
Com o tempo, a gente aprende que a vida dá voltas e que nada é permanente. Os Maias, gente heroica, ensinaram que, enquanto o mundo gira, mudam-se as oportunidades, os sentimentos, as opiniões e os desejos. Por definição, a amizade é carinhosa, nunca repressora. Devemos pensar nisso antes que comecemos a esquecer os nomes, os rostos e os pedidos dos amigos. Que se faça isso agora, enquanto conseguimos levantar o copo para brindar. Em breve, talvez não tenhamos mais força para baixá-lo. Nem que sejamos uma Pi, aquela letra grega tão imensurável quanto os poderes de Themis.