Adubo da vida
Recado mal dado leva velha amizade para o túmulo
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emAlém das traquinagens da adolescência e juventude, fiz amizades que até hoje carrego no coração. Uns meus contemporâneos, outros mais velhos, mas todos muito queridos. Alguns passaram dessa para melhor sem entender o alcance de determinados gestos com os quais achava que os agradava. Uma tarde, voltando de minhas andanças futebolísticas, encontrei seu Grimaldi, um vizinho faceiro e bem apanhado, apesar de seus então quase 80 anos. Ele tinha cara de poucos amigos. Me aproximei, perguntei o que se sucedia e ele, já se contorcendo, informou que estava com um sério nó nas tripas e que precisava adentrar o Mangueirão, local de mato abundante, de pouca visão para terceiros e com uma grama bastante propícia para atos defecatórios.
Lembro como se fosse hoje, a única recomendação do velho Grimaldi foi pedir para avisar se passasse alguém. Olhando de um lado para o outro, fiquei de cão de guarda. Hoje, tenho certeza de que captei errado a mensagem do confrade em apuros. Passados alguns minutos, surge no fim da rua uma ruma de senhoras, a maioria vizinhas e beatas em último grau. Ao se aproximarem, perguntaram o que eu fazia ali debaixo daquele sol escaldante. Respondi que aguardava seu Grimaldi em suas necessidades. Entendendo que elas não haviam entendido nada, de pronto resolvi atender à determinação, avisá-las do ocorrido e encaminhá-las até onde o véio descarregava o bucho.
Chegando ao local do cagamento, a cena foi cinematográfica: meu velho amigo de cócoras, mãos no queixo, olhando para o céu, a calça e a cueca samba canção arriadas na altura das canelas, o chapéu pendurado em um galho de goiabeira, o blazer em uma touceira qualquer e os pensamentos longe. Só o cheiro era próximo. Quando cheguei à moita escolhida, seu Grimaldi, desesperado, xingou toda minha árvore ginecológica e, aos berros, lembrou-me carinhosamente: “Filho de uma égua, eu não pedi para você avisar?”. Caramba! Que grosseria! Pois foi exatamente o que fiz. Às carreiras, seu Grimaldi escondeu-se atrás do tronco de uma das dezenas de mangueiras.
Antes, arrancou um robusto ramo da touceira onde estava o paletó para a higiene do corrugado roscofe. Coitado! Era urtiga da família das urticas dioicas (assim mesmo com C) com pelos que agem como agulhas hipodérmicas. O grito estendeu-se por toda a vizinhança e até hoje é lembrado para o Guinness Book como a cagada mais engraçada da região. Acho difícil, pois, infelizmente, a prova já virou pó. Quem sabe adubo. E ela é condição sine qua non para registros de recordes do tipo. Uma pena, mas seu Grimaldi partiu sem essa emblemática e residual homenagem. Embora tenha pedido perdão ajoelhado no milho, ele se foi meu inimigo. Em outras palavras, uma velha amizade acabou-se em um túmulo.
Chorei e me embebedei no velório do véio, o melhor, mais festivo e mais alegre de que já participei na vida. Quero um igual quando chegar minha vez. Tema de futura narrativa, muitos velórios não costumam ser tristes. Pelo contrário. Tristeza só quando acaba a cachaça ou o café sem açúcar. Graças ao bom Deus, algumas das vizinhas que testemunharam a evacuação no Mangueirão continuam vivas. Tenho certeza de que elas entenderam o mal entendido. Por isso, a carraspana ou o corretivo ficaram na imaginação. De qualquer maneira, já tinha pronta a resposta: Donas fulanas, não se apoquentem. Afinal, é fazendo cagada que se aduba a vida. Tivemos um tal de mito governando o Brasil que não me deixa mentir.