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Nem ditadura abusou

Jarbas Passarinho, o bispo, a Constituição e os indígenas

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Giovana Girardi/Va Agência Pública -Foto Joédson Alves, ABr

A discussão retomada na quarta-feira, 7, no plenário do Supremo Tribunal Federal sobre o marco temporal para terras indígenas me fez lembrar uma história que ouvi há quase dois anos e que ajuda a ilustrar o que está em jogo.

Um dos personagens chave para o artigo sobre direitos indígenas ter saído como está na Constituição de 1988 foi o senador Jarbas Passarinho (então PDS-PA), que propôs uma emenda definindo que os indígenas teriam direito às terras que “tradicionalmente ocupam”.

Em sua justificativa, como mostrou ontem uma reportagem de O Globo, Passarinho explicou que da forma como o texto do artigo tinha sido proposto inicialmente – com a expressão de “posse imemorial” –, prejudicaria “irreversivelmente” as comunidades indígenas “já vitimadas por processos de transferência forçada”. Ou seja, ele quis evitar que ficassem sem direitos aqueles que tinham sido expulsos e não estavam presentes em suas terras no momento da promulgação da Constituição – exatamente o que está sendo debatido agora. O Congresso da época acatou.

” Os motivos que fizeram Passarinho – um político que fora ministro da ditadura militar, tendo inclusive assinado o famigerado AI-5 – assumir essa liderança eu imagino que sejam muitos, mas tem um episódio de sua vida pessoal que deve ter colaborado. E envolve sua mulher e um bispo austríaco radicado no Brasil.

Tomei conhecimento dessa história quando estava trabalhando na apuração do podcast Tempo Quente, da Rádio Novelo, que foi ao ar há um ano. Estava em Altamira, no Pará, e fiz uma entrevista com d. Erwin Krautler, bispo emérito do Xingu, que testemunhou alguns dos episódios mais marcantes da história da ocupação da Amazônia, como a construção da Transamazônica e da usina de Belo Monte. Assim como o extermínio dos povos tradicionais.

Com esse histórico, d. Erwin auxiliava o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) em uma espécie de lobby que era feito entre parlamentares que faziam parte da Assembleia Constituinte no fim dos anos 80 para que eles garantissem os direitos indígenas na nova Carta que estava sendo elaborada.

D. Erwin contou que já tinha percebido que não tinha como só conversar com a esquerda, que parecia mais propensa à causa. Era preciso envolver também o centro político, e Passarinho representava o grupo. No meio das discussões, a mulher do senador, Ruth de Castro Gonçalves Passarinho, morreu em Belém. D. Erwin estava em Altamira, e foi solicitado pelo prefeito da cidade, amigo de Jarbas, a celebrar uma missa pela alma de Ruth na catedral da cidade.

“Ele era amigo do meu tio, d. Eurico, mas eu não mantive uma amizade com ele, porque eu me lembro do AI-5 e da posição dele naquele tempo e eu nunca entendi, porque ele era uma pessoa íntegra. Mas no AI-5, diante da tortura, eu esperei que ele tomasse uma posição a partir da filosofia humanista que ele defendia, que ele gritasse um chega, um basta para essa carnificina. Isso até hoje eu não entendo por que o Jarbas Passarinho naquele tempo não se levantou e gritou ‘basta’, mas a história foi assim”, lembrou d. Erwin.

“Então morreu a dona Ruth. Era um casal que se amava, isso eu sabia. E a morte de dona Ruth pra o Jarbas foi horrível, criou uma tristeza tremenda”, continuou o bispo, que fez a missa. “A mão de Deus estava sobre mim [naquele dia], o Evangelho era ‘deixai as criancinhas vir até mim’, e eu agradeci a dona Ruth tudo que ela fez pelas crianças desvalidas e abandonadas. Muitas creches até hoje têm o nome dela, de fato ela se empenhava muito em favor da criança desvalida.”

Apenas alguns dias depois, d. Erwin tinha de ir para Brasília e, por coincidência, o senador estava no avião. Durante o voo, o bispo foi dar suas condolências. “Eu só disse ‘senador’, ele tirou o cinto, levantou, me abraçou e chorou e chorou mesmo. Ele me disse que agradecia penhoradamente as minhas palavras e eu disse que falaria de novo e em tudo quanto é canto, porque é a mais pura verdade. Quando cheguei a Brasília, dois advogados do Cimi me esperavam e perguntaram se eu conhecia o Jarbas Passarinho”, conta d. Erwin.

Os advogados perceberam a chance de ouro: “O sr. tem de falar com ele. É questão de vida ou morte”. D. Erwin ficou receoso, queria respeitar o luto, mas concordou em ligar pro senador e pedir pra falar com ele. “É assunto da Constituinte”, disse. Passarinho o recebeu naquela mesma noite.

“O senhor nasceu no Acre, foi governador do Pará, é senador pelo Pará, então o Acre e o Pará, por assim dizer, são as duas colunas que sustentam a Amazônia. Então o sr., como filho dessa terra, tem a obrigação moral de defender os povos originários, e os direitos deles têm que ser ancorados na Constituição Federal”, lhe disse o bispo.

Passarinho ouviu, assentiu, e depois ainda escutou o que tinham para acrescentar os advogados do Cimi. “Fato é que depois de algum tempo ele fez o discurso inflamado no Congresso dos Constituintes, defendendo a causa indígena”, concluiu d. Erwin. “Foi uma vitória, pra mim foi um milagre.”

Foi de fato uma vitória. O texto, como proposto pelo senador, foi aprovado por 497 votos a favor e apenas 5 contra.

Fico imaginando se fosse hoje. Não preciso pensar muito. Um projeto de lei que institui o marco temporal e outros retrocessos foi aprovado na Câmara há uma semana, fortemente apoiado pela bancada ruralista. Foram 155 votos contra e 283 a favor, entre eles de Joaquim Passarinho (PL-PA), sobrinho de Jarbas.

O PL aprovado na Câmara aguarda, agora, tramitação no Senado. E o STF, após voto de Alexandre de Moraes (contrário ao marco) mais uma vez, suspendeu a votação, após pedido de vistas do ministro André Mendonça, o “terrivelmente evangélico”. Os povos indígenas continuam na espera.

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