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Garantismo de botequim

Doutora juíza, se a Sra já passou fome, deu alguma carteirada?

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Tânia Rêgo/ABr

Na mesma proporção que agradeço a Deus e seus mensageiros da alegria por ter nascido nesta terra maravilhosa chamada Brasil, culpo o Diabo e sua legião do mal por ter transformado a Pátria Amada em uma nação desigual, caótica, mentirosa, miserável e, em alguns casos, impatriótica, indecente, desprezível, torpe e até obscena. Com riquezas naturais acima do normal e do merecimento, também somos o país do futebol, do carnaval, do mar, do pagode, do frevo, do funk, da MPB, do Axé e de gente bonita e feliz de Norte a Sul. Seria o suficiente para todos os brasileiros esbanjar paz e viver em constante harmonia.

Seria, não fossem os abjetos, chulos e desonrosos personagens jogados sem querer por aqui. Sem preocupação com eventuais suscetibilidades feridas, acredito que o Brasil de hoje está bem próximo daquela expressão popular utilizada para indicar um ato injusto e desonesto, algo feito de forma parcial ou corporativa. Refiro-me aos dois pesos e duas medidas, normalmente praticada por aquele (a) que, por razões diversas, se perdeu pelo caminho. Ou nunca se achou. Lembro de uma frase na qual o pensador afirma que, apesar dos dois lados da moeda, a cara e a coroa têm sempre o mesmo valor. Basta escolher o melhor para a vida.

Todo esse preâmbulo para chegar na juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Em uma audiência de custódia realizada esta semana, a toda poderosa magistrada entendeu que não houve tortura no caso de um homem negro carregado com as mãos e os pés amarrados por policiais militares da capital paulista. O cidadão havia sido preso em flagrante sob a acusação de roubar produtos em um supermercado. Não tenho informações sobre algum requerimento assinado pela imaculada doutora pedindo condecorações para os policiais envolvidos no caso. Aposto e dobro como sua excelência e as “otoridades” da PMSP jamais sentiram fome. Se sentiram, deram carteirada e acabaram comendo de graça.

Nesse caso específico, acho que a conduta de todos seria outra fosse o preso membro do PCC ou assaltante de banco. Na mesma São Paulo, na noite de terça-feira (6), PMs abordaram, imobilizaram e algemaram um adolescente de 17 anos dentro de uma escola estadual na Zona Norte paulistana. O estudante teria quebrado o lacre de um extintor e espalhado água pela escola no dia anterior. Será que os dois policiais nasceram santos? Será que nunca foram jovens? É claro que o rapaz não foi correto, mas, diante da lei, uma rebeldia de menino ou o roubo de comida em supermercado são tipificados como crimes hediondos. Ou seja, leis diferentes para o mesmo povo

Para a turma da toga, é algo tão grave como pilhar os cofres públicos, tramar golpes contra a democracia e enriquecer às custas de emendas parlamentares. Lendo sobre esses fatos, não há como não lembrar dos expoentes da roubalheira brasileira, a maioria inocentada, libertada e adorada por boa parte da sociedade. Lamentável o registro, mas só no Rio de Janeiro, seis governadores e um prefeito foram afastados ou presos nos últimos sete anos. No Brasil, a lista é tão extensa que citá-los seria o mesmo que reeditar pelo menos um terço da antiga lista telefônica. Recuando alguns poucos anos no tempo, o mais grave é a lembrança da prisão do ex-governador Sérgio Cabral, um dos maiores assaltantes que o Rio de Janeiro já produziu.

O Brasil inteiro se recorda que ele, como qualquer meliante acima da média, foi preso e algemado. As algemas de Cabral suscitaram um falatório tão grande no país que “obrigou” o STF a editar uma Súmula Vinculante permitindo o uso de algemas somente “em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade”. Certamente não foi o caso do “ladrão” de comida, tampouco o do “bandido” do extintor. É o tal do garantismo de botequim. Em síntese, realmente o Brasil não é para os bons e nem para os amadores. O mais lamentável é a normalidade dos dois pesos e das duas medidas. Ninguém reage mais. Condescendência para os ricos e, para os miseráveis, a face rigorosa da lei. É o tipo da tristeza que não se explica.

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