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Aloísio, o viúvo

Ouvir falar de jenipapo murcho eleva moral

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Irene Araújo

Aloísio, ao completar seus 90 anos, não conseguia enxergar motivos para comemorar. Há pouco havia perdido sua companheira por mais de meio século, que sucumbira ao câncer após anos de luta. Sozinho naquele amplo apartamento, mal recebia visitas, já que todos os últimos amigos padeciam de alguma enfermidade em decorrência de tamanha longevidade.

Petrônio, o único que de vez em quando arriscava uma caminhada até a residência do Aloísio, muitas vezes nem se lembrava de algo para dizer. Não que fosse um ser desprovido de afeto ou empatia. Pelo contrário, até o próprio Aloísio seria capaz de sair em defesa do amigo. Essa falta de memória se devia ao Alzheimer, que nos últimos anos cismava em acompanhar o Petrônio.

Desanimado com tudo, Aloísio estava decidido a se matar. Mas esse seu intuito acabou por não se concretizar. É que o velho, de tão religioso, temia acabar indo pro inferno, assim como, supunha, todos os suicidas. Abriu uma garrafa de vinho e perdeu os sentidos no amplo sofá da sala.

Acordou com uma ressaca daquelas. Há tempos não bebia tanto. Por um instante sentiu certo alívio da esposa ter morrido. Não que ela também não bebesse de vez em quando. Todavia, a velha não suportava quando o marido perdia a linha.

Levantou-se do sofá. Não que preferisse fazer outra coisa além de adormecer e nunca mais acordar. Mas a bexiga, tão envelhecida quanto ele, estava repleta.

Diante do vaso sanitário, Aloísio se esforçava para urinar. O líquido amarelo escorria fraco, alguns pingos caíram na borda da privada. Nada mais daqueles jatos firmes de décadas atrás. Nem puxando pela memória, o velho se recordava da última vez que havia usado suas partes para outras tarefas além de fazer xixi.

Resolvido o problema da bexiga repleta, Aloísio vasculhou a caixinha de medicamentos. Nada de analgésico para aliviar a dor de cabeça, que ainda persistia. Apesar de desanimado, teve coragem suficiente para pegar a carteira, calçar os sapatos e sair.

A farmácia era logo ali. Entretanto, era dia de feira. Aloísio, mesmo a contragosto, teve que passar por aquela algazarra, quando ouviu algo que o animou. Eram duas senhoras, não mais de 60 anos, que conversavam animadas.

– Quanto mais murcho, melhor!

Aloísio estufou o peito e quase desfilou em frente daquelas duas. A dor de cabeça parecia ter desaparecido por completo. Mal sabia o velho que aquelas mulheres estavam se referindo a jenipapo.

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