Curta nossa página


Meu avô

Flauta silenciosa transporta para viagem de 108 anos

Publicado

Autor/Imagem:
Daniel Marchi de Oliveira - Foto Reprodução/Acervo pessoal

Despertei no 31 de agosto na hora da alba já pensando nos diversos compromissos do dia, as tarefas deixadas pendentes no dia anterior por causa da dependência dos inúmeros sistemas de informática com que temos que lidar na profissão (e que na véspera deixaram os usuários a ver navios). Enquanto tomava meu café da manhã, ouvia no noticiário as embrulhadas com que certo capitão anda metido na Polícia Federal, ao mesmo tempo em que ia checando as redes sociais com inúmeras mensagens.

Entre o sonho e a realidade, entre a rudeza dos dias e a poesia da vida, sequer me lembrei dele. Foi ao longo do dia que minha mãe recordou: hoje seria seu aniversário. Meu avô nasceu há 108 anos. Penso espantado: cento e oito! Como, a esta altura da vida, percebo o quanto convivi com pessoas nascidas há mais de um século.

Quando vivo, meu avô me contava histórias de seu pai, um italiano que era maestro de banda nas horas vagas, mas sustentava a família na rudeza de um botequim; de sua mãe que morrera no parto do 12º ou 13º filho; de seu tio “emprestado”, rico industrial, que viera pobre da Sicília e começara sua fortuna amassando barro com os próprios pés para produzir tijolos; de sua tia parteira a quem até os médicos da cidade recorriam na iminência de um parto difícil.

Eu ouvia maravilhado a biografia daquela gente arrojada e remota, todas distantes no tempo, quase tanto quanto meu avô está agora.

Meu avô tinha no repertório histórias engraçadíssimas, de como “fazia miséria” com sua canoa no rio Paraíba do Sul, caudaloso e cheio de perigos em sua época, de como ganhou o apelido de “Escangalha” quando, nos anos 30, pilotava pela cidade uma motocicleta alemã que mais dava defeito do que funcionava, da época em que fora lutador de boxe no circo onde um irmão seu era palhaço e nas lutas, todas coreografadas, ele sempre saía vencedor.

Conseguia contar com bom humor até do acidente de carro que sofreu quando, aceitando carona de amigos para uma pequena viagem, aboletou-se na caminhonete cheia de sacos de farinha de trigo na carroceria. Numa das curvas da estrada, o motorista perdeu o controle da direção e tombou caminhonete, passageiros e farinha barranco a baixo. Meu avô, meio consciente e meio tonto do susto, vendo todo aquele pó branco no ar, pensou: “morri e estou no céu, que lindo!” Quando recobrou-se, teve de voltar para casa a pé, todo sujo de farinha da cabeça aos pés, e com a coxa furada pela maçaneta da porta do veículo.

Assim era meu avô, valente frente as agruras de uma vida de muito trabalho e de pouquíssimas recompensas materiais. Conhecido na cidade por fazer chupetinhas de calda de açúcar onde um corante vermelho deixava com a aparência de um brilhoso rubi aquele doce com remoto sabor de cereja e morango.

A receita, muito simples, fora herdada de seu pai, com a diferença no formato – as do meu bisavô eram bonecas, aviões, revólveres, patos… Mas o segredo era o ponto vítreo da calda de açúcar, que se recebesse os pingos de corante cedo ou tarde demais, estragava-se na hora, ou não endurecia dentro das formas de puro chumbo.

O formato das chupetinhas, todas iguais, havia sido adotado por meu avô em contraposição à variedade das do seu pai, para poder determinar melhor o preço da venda no atacado e não aborrecer o comerciante quando, no balcão, a criança pedia o doce no formato que mais lhe agradasse, invariavelmente inacessível no fundo do pote onde eram guardadas.

Meu avô era agnóstico, embora ele mesmo não soubesse disso. Mas percebo hoje o quanto influenciou em minhas concepções, eu que me considero um homem de fé. Na sua rudeza natural de homem criado pela escola da vida, tinha uma grande sabedoria e conversava com gente de qualquer nível intelectual.

Meu avô amou muito uma jovem, chamada Irene, de quem foi noivo. Irene lhe escrevia sonetos apaixonados. Era encantadora. A família de sua noiva era rica, dona de uma grande fazenda, e resistiu um pouco à possível união dela com o filho de estrangeiros, pobre e sem formação. A resistência afrouxou quando a menina foi descoberta com tuberculose, e era meu avô que a alegrava quando estava caminhando para o destino esperado. Irene morreu nos braços do noivo.

Tempos depois, ele conheceu uma prima com quem pouquíssimo convivera antes, e que até então estivera em um colégio de freiras de Petrópolis. Casaram-se e, por conta desse encontro, eu estou aqui escrevendo estas linhas, pois dele vieram minhas tias e minha mãe.

Meu avô era um pouco nostálgico quanto aos nomes italianos, porque seu pai lhe deu nome nem um pouco italiano. Mas não lhe custou fazer um trocadilho – “pouca água e muita água: faz o nome de uma pessoa que gosta muito de você”, ele me dizia. Balde-mar, completava ele imitando um sotaque italiano a seu jeito. Waldemar…

Ansiava as férias para que eu o visse cuidando de seus galos e galinhas, para que ele me carregasse num carrinho de mão que passava por túneis, planícies e florestas imaginárias, para beber água Salutáris gasosa, bem gelada, que ele nunca deixava de comprar aos engradados quando se aproximava a época das nossas visitas a sua casa. E para ouvir sua flauta transversa de madeira, tocada de ouvido, com acerto brilhante em todas as notas.

A casa, na cidade do interior um tanto modificada, continua lá, praticamente igual. A mesa da sala de jantar é ainda a mesma em que ele se sentava para o almoço farto dos domingos. O quintal, agora vazio, já não tem mais os bichos que nos acordavam com seus cantos e cacarejos no raiar do dia. A flauta, que já era antiga quando meu avô a comprou com 15 anos de idade, hoje está silenciosa no meu escritório. Mas a presença do meu avô ainda se faz sólida em todos os cantos.

Às vezes, quando regresso à sua cidade, ainda tenho a impressão de sentir o cheiro dele naqueles ambientes, um cheiro de calda de açúcar e creme de pentear o cabelo.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.