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Plebiscito e referendo

Dogma ou tabu, o aborto precisa ser discutido por todos

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Mathuzalém Júnior - Foto Rovena Rosa/ABr

Ao se utilizar do personagem Hamlet para afirmar que “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”, William Shakespeare tinha por intenção informar que a racionalidade e reflexão são fundamentais para o ser humano. Obviamente que, por si só, ambas não têm a capacidade de explicar o que ocorre no mundo.

Nos séculos XX e XXI, a hipocrisia se consolidou de tal forma na sociedade que hoje, apesar da Inteligência Artificial, ainda fazemos cara de paisagem diante de temas que a maioria do povo brasileiro não admite discutir. Um dos assuntos mais atuais do Brasil, o aborto virou tabu principalmente em decorrência dos valores éticos, morais, filosóficos, biológicos e religiosos dos intervenientes, isto é, dos partícipes.

São valores consideráveis e justos. No entanto, nenhum de nós tem o monopólio da sabedoria ou da verdade. É uma temática controversa e que precisa ser debatida sem julgamentos, emoções, religiosidades, tampouco convenções. É uma questão de saúde pública, porque, queiramos ou não, descriminalizado ou não, a prática continuará existindo.

Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) revelam que anualmente 25 milhões de abortos inseguros são realizados no mundo, dos quais cerca de 800 mil no Brasil. Dessas, 200 mil recorrem ao SUS para tratar as sequelas de procedimentos malfeitos.

Portanto, a despeito da criminalização e dos estigmas, o aborto, assim como a menstruação, a menopausa e a gravidez, é um evento comum na vida das mulheres ricas e pobres. A diferença é que, mesmo proibido, as madames com conhecimento e dinheiro procuram clínicas para interromper uma gravidez indesejada ou de risco.

A prática abortiva das que não têm recursos será sempre mediada por uma amiga e executada por um charlatão do tipo açougueiro. Não há o que se discutir do ponto de vista cristão e espiritual. A vida é um bem inalienável e somente Deus pode interrompê-la. Não esqueçamos que a vida começa na concepção.

No entanto, principalmente nos casos de estupro, é fundamental que, antes das críticas e de pré-julgamentos, se ouçam as interessadas, como fez a ministra Rosa Weber, primeira integrante do STF a votar pela descriminalização do tema. Vale lembrar que a maioria dos estupros ocorre dentro de casa ou em ambientes conhecidos. Ou seja, perdeu-se no tempo o argumento hipócrita de defesa da família.

Diariamente, o noticiário mostra pastores, padres e pais de santo envolvidos com abuso sexual, inclusive de menores. Esse caos social parece de somenos importância. É mais fácil atacar quem mostra a cara e demonizar as Nações Unidas, instituição que se preocupa em garantir a proteção à saúde de milhões de mulheres pelo mundo e, por isso, cobram um posicionamento do Brasil.

Nada de anormal. Anormal é divulgar como demoníaca qualquer iniciativa de discussão a respeito da matéria. Anormais também são as verdades absolutas que, na opinião dos falsos pregadores, devem ser ensinadas com autoridade. A questão básica é que determinados segmentos não discutem e não deixam ninguém discutir. Transformaram a polêmica em dogma.

Prosaicamente, nada fazem para solucionar, minimizar ou esconder o problema que deveria ser de todos. Como é de interesse nacional, é imperativo que o debate saia das mesas dos grupos antiaborto, os que se intitulam “pró-vida”, e dos que advogam pela liberdade da mulher, os denominados “pró-escolha”. O Brasil quer e precisar opinar. Não adianta correr para trás. Temos de olhar e jogar para frente.

Em resumo, os certames não devem ser considerados altercações ou disputas entre direita e esquerda, entre cristão e ateu. Se há o conflito, vamos argumentar antes que as querelas se transformem em plataforma eleitoral para candidatos que não estão nem aí para quem sobrevive ou morre de um aborto. Entre a fantasia e a realidade, tentemos o bom senso.

Temos mecanismos para dirimir esse tipo de imbróglio. O artigo 2º. da Constituição estabelece que o plebiscito e o referendo são consultas formuladas à população para que se delibere sobre matéria de acentuada relevância, como é o aborto. No plebiscito, o povo decide sobre uma proposta antes dela ser elaborada pelo Congresso. No referendo, o Congresso apresenta uma proposição finalizada e o povo a acata ou a rejeita. Simples assim. Nenhum de nós é o senhor da razão.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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