Aqui se faz, aqui se paga
Vicente faz tudo para ser plebeu da rainha Helena
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emVicente havia herdado a soberba do pai, que, mesmo precisando contar os vinténs nos dias finais do mês, parecia ter o rei na barriga. É certo que nunca teve que passar fome, mas penava aos montes para se manter na tão sonhada classe média. E, até agora, aos 42, havia conseguido, apesar de altos e baixos, por conta de conjunturas econômicas, que o obrigaram a fazer um furo mais para cá, outro para lá em seu cinto, o que ajudou a manter as calças quase firmes em sua cintura.
O homem, no final das contas, trabalhava em uma repartição pública. Na verdade, não era o melhor local para se ficar rico, ainda mais porque a sua conduta era de alguém como um qualquer de nós, ou seja, quase honesta. No entanto, o pingado, mesmo que parco, caía religiosamente todos os meses.
Contas pagas, até que sobrava alguns trocados para certas estripulias, desde que não muito fora do esperado. Todavia, os genes malditos que herdara do pródigo genitor, às vezes, eram mais fortes do que a razão. E foi justamente o que aconteceu nesses dias, quando o gajo conheceu Helena, que trazia a beleza além do nome.
Vicente não estava sozinho nessa batalha, pois outros homens a cortejavam. Temendo que a mulher pendesse para um lado ou outro, tamanha a concorrência, eis que o nosso herói decidiu fazer um convite irrecusável, pelo menos aos olhos da plebe. Um jantar em um chique restaurante da cidade. Não um que vendesse comida a quilo, como se fosse um fetiche de cumbucas repletas de alfafa para saciar a fome da ralé que se enfileira, como gado, tampouco um prato feito destinado a trabalhadores braçais.
O homem, de tão ansioso, já estava diante do edifício de Helena meia hora antes do combinado. Por impulso, meteu a mão no bolso para buscar um cigarro. Nada encontrou, até que se lembrou que havia largado o vício há quase seis meses, após várias tentativas frustradas. Aparentemente, estava livre da nicotina, mesmo que ainda sonhasse quase todas as noites com ela.
Pensou em ligar o rádio para escutar as últimas notícias. Não o fez, pois se lembrou que a bateria do carro não estava lá muito boa. Se o automóvel enguiçasse justamente naquele dia, seria o fim de um próspero futuro ao lado da quase amada. Vicente não tinha dúvida de que ela buscaria os braços de outro mais endinheirado.
Depois de arrancar as cutículas com os dentes, esfregar as mãos, estalar os dedos, passar o pente por dezenas de vezes nos cabelos, buscar os melhores ângulos no espelho do carro, baforar inúmeras vezes na palma da mão para sentir o próprio hálito, agora faltavam cinco minutos. Vicente se perguntou se era prudente chegar alguns minutos antes ou no horário. Na dúvida, abriu a porta do veículo e se dirigiu à portaria do prédio em frente, onde tocou o interfone e ouviu a voz pela qual tanto ansiava.
Durante o trajeto, o casal trocou algumas palavras. Ele, nervoso, fazia um esforço mental para não confundir os pedais de freio, embreagem e acelerador, tamanha a tremedeira em suas pernas. A mulher, aparentando maior confiança, sorria e soltava frases aleatórias, apenas para manter o fluxo da conversa.
Mais 20 minutos, os dois chegaram ao destino. Uma pequena fila de carros aguardava a vez de estacionar. Dois homens de terno e gravata apareceram ao lado do automóvel de Vicente.
– Sejam bem-vindos ao Don Francesco. O senhor pode deixar, que estaciono o veículo, enquanto o meu colega irá acompanhá-los até a mesa reservada.
Vicente, mesmo não estando acostumado com tantas regalias, se sentiu muito bem, ainda mais porque percebeu o sorriso de uma encantada Helena. Ele estava certo de que os dois passariam uma bela noite e, em seguida, enlaçariam um romance, que, era óbvio, prosperaria até a formação de uma linda e invejada família.
Acomodados em cadeiras acolchoadas de couro fino, os pedidos foram feitos. Iguarias jamais degustadas por aqueles dois. Sorrisos de cumplicidade, tilintares de taças de vinho, um quase beijo solto no ar. Vicente, talvez mais liberto por conta da bebida, tomou coragem e encostou a mão na da amada. Ela retribuiu o gesto e sorriu.
– Hum, estou me sentindo uma rainha!
A noite prometia. Depois do jantar, ainda veio a sobremesa. Até Vicente, que não era muito chegado a doces, quis acompanhar o desejo de Helena. Degustaram, cada qual, um camafeu.
Entretanto, existe um famoso ditado que diz aqui se faz, aqui se paga. Não tardou, chegou a hora da conta. Assim que viu aqueles números tão distantes da sua vida prosaica, Vicente sentiu que o efeito do vinho havia se evaporado por completo. Não chegou a engasgar por simples falta de saliva.
O homem, constrangido pela surpresa, buscou o cartão de crédito em sua carteira. Ainda pensou em parcelar o valor em seis vezes, mas não teve coragem diante de Helena. Passou-lhe pela cabeça a ideia de pedir para retirar a gorjeta, mas logo suprimiu tal pensamento. Pagou tudo à vista.
Na saída do restaurante, Helena, ainda embriagada pelo jantar dos sonhos, envolveu o braço direito de Vicente com os seus. Ela recostou a cabeça no ombro do homem. O plano de Vicente, parecia, havia funcionado. Tanto é que ela repetiu a frase que, há pouco, encheu de esperança o coração do gajo.
– Hum, estou me sentindo uma rainha!
– E eu, um plebeu.