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Tudo ou nada

Sítios arqueológicos são marca do Marco Temporal

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Autor/Imagem:
Giovana Girardi/Via Agência Pública de Jornalismo Investigativo - Foto de Arquivo

Nem 1988. Nem mesmo 1500. Em meio ao acalorado debate que tomou conta do Brasil nos últimos meses em torno da tese que propõe o estabelecimento de uma data – um marco temporal – para que se defina quais indígenas têm direito à demarcação da sua terra, uma pesquisa científica que acaba de ser publicada traz elementos novos que dão uma ideia do tamanho, e do impacto, da ocupação milenar dos povos originários na Amazônia.

Um mapeamento feito com uma tecnologia conhecida como Lidar (ferramenta de sensoriamento remoto que emite feixes de laser) estimou a existência de algo entre 10 mil e 23 mil sítios arqueológicos ainda desconhecidos, escondidos sob a densa floresta em toda a Amazônia.

São locais onde, por mais de 12 mil anos, viveram sociedades complexas, que construíram estruturas de terra e domesticaram plantas, alterando a paisagem em seu entorno de modo a torná-la mais produtiva. As modificações profundas, feitas entre 1.500 e 500 anos atrás, mas com efeitos de longo prazo, moldaram a floresta à composição que conhecemos hoje.

É um baita trabalho multidisciplinar, elaborado por 230 pesquisadores, de 156 instituições do Brasil e de mais 23 países, que foi publicado nesta quinta-feira (5) na revista científica Science, uma das mais prestigiosas do mundo.

“A enorme extensão dos sítios arqueológicos e florestas modificadas pelo homem em toda a Amazônia é extremamente importante para estabelecer uma compreensão precisa das interações entre as sociedades humanas, a floresta amazônica e o clima da Terra”, escrevem os autores, liderados pelo geógrafo Vinicius Peripato, doutorando em sensoriamento remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e por Luiz Aragão, chefe da Divisão de Observação da Terra do Inpe.

“Considerando a extensão generalizada de locais modificados por práticas de cultivo e manejo pré-colombianas, a Amazônia pode ser vista como um antigo sistema socioecológico, com respostas de longo prazo às mudanças do clima”, continuam.

A revelação científica em si é interessantíssima (confesso que meu lado repórter-nerd-de-ciência vibrou quando eu vi o paper). Com uma varredura inicial com o Lidar, em uma área que representa apenas 0,08% da Amazônia, eles encontraram sob a copa das árvores 24 sítios desconhecidos, com diversas estruturas feitas pelos povos originários, como aldeias fortificadas, estruturas de defesa e cerimoniais, assentamentos em topos de montanha, além de geoglifos.

Eles identificaram também, ao redor desses locais, a ocorrência de diversas espécies de árvores com sinais de domesticação – ou seja, elas foram intencionalmente manejadas para estar mais próximas aos assentamentos, de modo a prover alimento e outros recursos. É o caso da castanha do pará (Bertholletia excelsa), da macaúba (Acrocomia aculeata), do araticum (Annona montana), da pupunha (Bactris gasipaes), do açaí (Euterpe oleracea), entre dezenas de outras.

A partir desse achado, combinado com dados de outros 961 sítios que já tinham sido encontrados anteriormente com metodologias mais tradicionais – por meio de imagens de satélite de alta resolução, em áreas desmatadas –, os pesquisadores desenvolveram uma modelagem que estimou a possível existência de mais de 10 mil estruturas semelhantes ao longo da bacia amazônica.

É a primeira vez que se tenta determinar o tamanho e a escala dessa ocupação humana na região. Só por isso o trabalho já mereceria ser muito bem divulgado.

Mas resolvi tratar desse artigo hoje neste espaço também pelas muitas implicações políticas que ele carrega, considerando o momento atual.

” Não é de hoje que a arqueologia propõe que muita gente viveu na Amazônia antes da chegada dos europeus às Américas, em sociedades complexas e estruturadas, e que a ideia de que lá havia uma floresta pristina, intocada, não se sustentava. Arqueólogos como Eduardo Neves, da USP (Universidade de São Paulo), há tempos propõem que a floresta foi moldada por essas populações e que o que hoje conhecemos é resultado em parte desse trabalho.

O trabalho publicado hoje, assinado por geógrafos, arqueólogos, biólogos, ecólogos, engenheiros, estatísticos, entre outros, traz evidências dessa importância humana. “A floresta foi ocupada e modificada pelos povos pré-colombianos ao longo dos séculos, e o estudo demonstra isso, seja pela ampla distribuição dessas construções de terra, ou até mesmo pela domesticação florestal através da introdução de espécies específicas de seus interesses”, me explicou Peripato.

E o interessante, disse ele, é que é possível observar que a relação desses povos com a floresta “estava mais voltada à sua utilização através da preservação que a relação de destruição”.

Pedi que ele explicasse como foi possível concluir isso. “Evidências de preservação estão ligadas ao padrão da floresta nesses locais. Existe a evidência da domesticação, mas nada que extrapolasse os locais próximos às estruturas ali desenvolvidas nem alterações que comprometessem o desenvolvimento florestal. Eles dependiam da floresta para alimentação, uso medicinal e diversos insumos”, afirmou.

Conversei rapidamente também com Eduardo Neves, pioneiro em propor essa interferência importante dos povos originários sobre a floresta. Para ele, o trabalho representa um divisor de águas para a teoria e deveria ser apreciado dentro do contexto político atual.

“Nessa discussão horrorosa do marco temporal, o trabalho tem um valor político importante porque demonstra a presença indígena muito antiga, criando paisagens, modificando a natureza, e que mostra como não faz o menor sentido, à luz das evidências arqueológicas, estabelecer um marco em 1988, um critério arbitrário para definir a presença indígena”, comentou.

Peripato também falou sobre isso. “A própria diversidade observada nos achados arqueológicos também prova que é sensível generalizar esses povos como se fossem todos iguais. Além da presença deles ao longo dos séculos, também fica evidente a relação que eles possuem com a floresta desde a sua subsistência a seus rituais religiosos.”

Agora pare e pense no argumento de que os descendentes desses povos, que não estavam nas suas terras no momento da promulgação da Constituição, muito provavelmente porque foram expulsos delas, não têm mais direito algum a essas terras por uma decisão do Congresso.

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