Chifre trocado
Terra da malandragem, Rio faz festa até para enterrar o Pinto
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emCeleiros de grandes manifestações artísticas, culturais e sociais, as periferias das grandes cidades, notadamente as do Rio de Janeiro, são fábricas de craques de futebol, de sambistas, de mestres de gafieira, de dançarinos multimídias e, lamentavelmente, de reis do crime. Como escrevi recentemente, no mesmo patamar dos bailes funk e das feijoadas com pagode, os velórios na ex-Cidade Maravilhosa são motes para longas e inesquecíveis festas. Depois de 12, 13 horas de conversê, paquera, beberagem, piadas em profusão e muita, muita cachaça, o defunto só é lembrado quando o padre ensaia o Pai Nosso ou quando o coveiro toca o sino que indica a hora de adentrar a morada final. É aí que a turma da velação procura saber o nome do morto.
Lá do fundo da capela alguém grita: É seu Pinto, que passou dessa para melhor por conta de um mal súbito. Mal súbito? Deixa pra lá. Morreu e agora vamos enterrar o Pinto e cuidar de dona Pinta. Quem se habilita? Como supostamente se trata de uma balzaquiana quase donzela, há sempre unanimidade entre os vivos. Dizem as más línguas que a disputa normalmente fica entre os dois mais encorpados nativos do bairro. A bem da verdade, o encorpamento é simbolicamente físico, pois viuvez feminina é um estado de espírito e gera o tal do topa tudo pelo prazer. Por isso, a necessidade de pensar no futuro obriga a moçoila de preto a esquecer bonitezas e buscar a fusão perfeita entre as coisas, isto é, o amálgama, que é a combinação da falta disso com a ausência daquilo. É isso que dá liga.
O problema é quando a comunidade inteira sabe que os dois chegavam juntos bem antes do seu Pinto desviver. Enterraram o Pinto, mas as maledicências, geralmente causadas pela inveja, não cessam. Eu, por exemplo, não gosto de fofoca, mas não consigo guardar segredo. Dizer que dona Pinta ciscava de costas e de frente talvez seja um franciscano pleonasmo. Não interessa. Importante é que a viúva sabia entrar para dentro e sair para fora. Embora redundância rime com abundância, devo dizer que, no caso em questão, o chifre trocado não dói. Aliás, esse trem antigo apelidado de chifre é somente uma coisa que colocam, temporária ou definitivamente, em nossas cabeças. Incomoda, mas não dói, principalmente se é corno do corno.
Engana-se quem acredita que aquele calombo que nasce e cresce na testa dos homens – eventualmente no das mulheres – é coisa do modernismo. E não é liberdade poética. Os cornos são originários dos tempos dos imperadores. Quem nunca leu a história do ditador Júlio César e de sua segunda mulher, Pompéia Sula, aquela a quem nunca bastou ser honesta. Ela tinha de parecer honesta. Tudo porque o louco e apaixonado Publius Clodius, fantasiado de tocadora de lira, clandestinamente entrou na festa que Pompeia havia promovido apenas para mulheres. Conta a história que não aconteceu, mas, como todo castigo para corno é pouco, o tirano Júlio César pediu o divórcio, sob a alegação de que “a mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita”.
Desconheço qualquer safadeza surubática de Nero, o hétero (?), mas, nos bastidores do Congresso Nacional, corre à boca pequena que o caçador Júlio César, enquanto marido de Calpúrnia, pegava a belezura da Cleópatra, ex-mulher de Ptolomeu XIII. Eita que balbúrdia das boas. Mas o que tem a Roma antiga a ver com a profusão de sons e de artistas das periferias das grandes cidades? Tudo. São as periferias que também colaboram com a produção do que temos de pior em nossa sociedade: os políticos, filhotes peçonhentos de nossa apodrecida política. Do mesmo modo que jamais consegui atinar para aquela questão ilógica sobre o ovo e a galinha, também nunca procurei saber a respeito da velocidade do cuspe, muito menos sobre quem veio primeiro: as prostitutas, as carpideiras ou os políticos.
Nunca soube dos ovos do Pinto. Na verdade, nunca quis saber. Sei apenas que minha narrativa está chegando ao fim e ainda não encontrei um prenome para o finado Pinto. Não poderia encerrar tão afetiva história sem lembrar que, no momento em que enterravam o Pinto, dona Pinta teve um princípio de siricutico, caiu em si, perdeu-se em saudades e, por pouco, não ocorreu ali mesmo um ato pra lá de cabuloso. Além da profusão de cornos, um bando de carpideiras (algumas com pinta de que já haviam provado do Pinto) contiveram a ensandecida viúva. Antes que algum desavisado confunda prostitutas e carpideiras com políticos, devo registrar que as primeiras são mães zelosas e as segundas moças de família pagas para chorar em velórios. Embora sejam filhos de ambas, os políticos nem sempre conseguem se livrar daquele apelido medonho de bons filhos… da mãe.