That's all righ
Jornada sonora do violão de um rapaz de costeletas
Publicado
emHá uma lenda de que, logo após se apresentar no Grand Ole Opry, de Nashville, no dia 2 de outubro de 1954, um certo rapaz de costeletas tenha sido aconselhado pelo empresário Jim Denny a desistir da carreira e voltar a ser motorista de caminhão. Em seguida, ainda de acordo com a narrativa, o cantor, já sozinho no camarim, teria, em um estado de fúria, estraçalhado o seu violão nas paredes.
Pois é, os restos mortais daquele instrumento teriam parado no lixo, caso não fosse por um detalhe. O faxineiro, de nome Arthur Johnson, ao contrário de Denny, teria ficado tão impressionado com a atuação do rapazola de costeletas e, por essas situações que acontecem somente a cada cem anos, resolveu catar aquelas lascas de madeira e levá-las para a sua casa.
O então jovem Arthur, apaixonado por quebra-cabeças, conseguiu, milagrosamente, juntar aqueles cacos. No entanto, ele, que não sabia fazer um dó, muito menos um lá e um mi, resolveu pendurar aquela preciosidade na parede do seu quarto. E ali ficou por um bom tempo.
Arthur, alguns anos após, conheceu a bela Aretha James. Enamorados que estavam, casaram-se antes que a barriga da moça despontasse. Diante daquela correria, parece que todos acreditaram que Anna Mae havia nascido prematura, apesar dos 50 centímetros e quase quatro quilos.
O jovem casal, precisando de mais espaço, acabou por retirar vários objetos da casa, que não era das maiores. Tudo foi parar no porão, inclusive aquele instrumento de cordas. Os anos seguintes voaram, até que Arthur, já perto de completar 80, cerrou os olhos pela última vez.
Aretha até pensou em se desfazer da casa, mas a manteve por alguns verões. Acabou se mudando para a residência de sua filha, que morava ali no mesmo bairro. Quanto à sua casa, resolveu transformá-la em pouso para os viajantes. Dessa forma, conseguiu angariar alguns dólares para pagar as contas.
Pois bem, um desses peregrinos que passou por Nashville foi justamente um dos meus grandes amigos, o Marcio Petracco, que estava perambulando pelos Estados Unidos em busca de novos sons. Ao lado de outros músicos, o Marcio passou uma noite na tal hospedaria. Como estava com menos grana que os demais, acabou instalado no porão.
Já que lenda pouca é bobagem, aqui vai outra. Lá estava o meu amigo sonhando o sonho dos forasteiros. Tudo parecia tranquilo, até que ele começou a ouvir uma voz rouca e aveludada, que lhe soprou nos ouvidos: “Take the guitar! Take the guitar!”
Assim que amanheceu, o Marcio despertou como se nada tivesse acontecido. No entanto, logo em seguida, ele se recordou daquelas palavras. Ele olhou ao redor e notou um amontoado de coisas num dos cantos do porão. Ergueu seu corpo e, para seu espanto, lá estava um violão debaixo daquilo tudo. Não teve dúvida, tratou logo de pegá-lo e, por impulso, o dedilhou. Ficou maravilhado com aquele som cheio de ecos, provavelmente por conta do ambiente quase hermeticamente fechado em que se encontrava.
Quando já estava de saída, o Marcio trocou algumas palavras com a velha Aretha, que pareceu ficar feliz por se livrar daquele violão. Ela até insitiu para que o meu amigo o levasse de graça. No entanto, ele retirou sete dólares do bolso e pagou pelo instrumento. Aretha sorriu, como se tivesse ganho na loteria, enquanto o Marcio, apesar de ter entregue todo o dinheiro que possuía, se sentiu o maior sortudo do mundo. Duro, é verdade, mas, mesmo assim, um sortudo!
De volta a Porto Alegre, o meu amigo não desgrudava daquele instrumento. Ele passou a conhecer todo o corpo daquele violão, inclusive percebeu que havia as iniciais EP incrustadas logo abaixo do braço. É verdade que ele não se deu conta do significado daquilo por alguns meses, até que, finalmente, o Marcio, no meio de um dos seus shows, soltou um “Como sou burro! Aquela voz! É óbvio que o violão era dele!”
Mas não pense você que essa história acaba por aqui. Afinal, nem tudo são flores, ainda mais quando o personagem é o Marcio Petracco. Eis que, num desses dias em que a tal Lei de Murphy está espreitando à espera de qualquer deslize, o meu amigo, inocente, puro e besta, resolveu levar seu violão para uma festa. O problema, diga-se de passagem, não era a festa, muito menos o violão, mas o meu amigo, que, naquele momento, tão raro em sua vida, se encontrava pra lá de Bagdá, com o nível etílico capaz de saturar o mais tarimbado dos etilômetros.
Para ir direto ao ponto, durante a festa, eis que o Marcio resolveu amarrar o violão em uma corda presa a uma árvore. Como não havia feito nó de marinheiro, não tardou, o instrumento despencou de uma altura de mais de dois metros e, pasmem, se estatelou todo no solo duro. Abriu-se uma cratera enorme no fundilho do violão.
Não se pode dizer que o meu amigo tenha ficado triste por isso, já que nem se deu conta do ocorrido. Somente depois de alguns dias é que, ao se lembrar de procurar seu violão, é que se lembrou de que o havia levado para a tal festa. Foi atrás do dito cujo, quando, então, foi informado por um quase desconhecido, que lhe disse que o violão havia se quebrado todo e alguém o teria jogado na lata de lixo.
O Marcio, completamente desolado, sofreu pelos próximos oito anos. Ele se sentia culpado e, ao mesmo tempo, um completo desmerecedor de possuir tamanha relíquia. Todavia, como já dito anteriormente, lenda pouca é bobagem, eis que, nesses dias, aconteceu algo inesperado.
Pois é, lá estava o folclórico músico gaúcho em mais uma de suas apresentações, quando, então, precisou se hospedar em um motel de beira de estrada. De tão extenuado que estava, tratou logo de se deitar naquela cama fria e desconhecida. Não tinha motivos para sonhar, mas sonhou um sonho há muito sonhado. Isso mesmo, aquela voz rouca e aveludada lhe soprou novamente nos ouvidos as seguintes palavras: “Take the guitar! Take the guitar!”
Na manhã seguinte, o Marcio acordou e, antes que chegasse a se levantar, se lembrou do sonho. Ele olhou ao redor, olhou debaixo da cama, mas nada de violão. Cadê? Ele se questionou. Tratou logo de arrumar as coisas para pegar a estrada quando, já na recepção, percebeu algo há muito desaparecido. Acredite ou não, lá estava o violão, aquele mesmo violão, todo empoeirado, pendurado em uma parede.
O meu amigo, com os olhos pregados naquele antigo companheiro, perguntou para a atendente quanto devia pela hospedagem. A moça respondeu e, em seguida, ela e o Marcio tiveram o seguinte interlúdio.
– E quanto devo pelo violão?
– Que violão?
– Aquele ali pendurado.
– Ah, você vai me fazer um grande favor se sumir daqui com ele.
Se isso aconteceu exatamente desse modo, não posso lhe afirmar. No entanto, é assim que o meu amigo, o grande Marcio Petracco, me contou ontem aqui no cachorródromo do Tesourinha, na linda Porto Alegre. E, para completar, ele ainda me solta essa.
– Dudu, fiquei tão eufórico, que liguei na mesma hora para a minha mãe e lhe disse: That’s all righ, Mama!