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Selva de pedras

Mistério da casa da qual só sobrou o chapéu da senhoria

Publicado

Autor/Imagem:
Daniel Marchi de Oliveira - Foto Reprodução/Aventuras na História

Ela reinava absoluta no centro de um grande terreno, numa rua pequena e residencial da zona sul carioca. As árvores em volta davam-lhe um ar meio sombrio, e um cheiro bem particular, parecendo petricor com madeira velha molhada, era uma de suas características. Era uma casa de estilo eclético, uma confusão de linhas e formas em torno de uma fachada pintada de bege e de branco, com uma varanda que ocupava toda sua extensão, com dois volumes divididos ao meio por uma espécie de torre.

Esse elemento exótico de sua arquitetura era arrematado em cima por um mascarão de olhar sereno e distante. O jardim, meio desfigurado pelo tempo e pelo abandono, continha um laguinho artificial com uma fonte, já seca, da qual em anos passados uma graciosa sereia cercada de aves pernaltas devia verter água.

Toda vez que eu passava em frente à casa, e eu o fazia desde que me entendera por gente, ouvia o mesmo ruído das folhas agitadas ao vento manso. Se era verão e fim de tarde, as indefectíveis cigarras faziam seu espetáculo. Se era inverno, o silêncio indiferente. O traço constante eram as janelas semicerradas da velha casa, sempre dando a entender que ela e seu possível pequeno universo particular ignoravam a marcha das coisas no tempo presente.

E a casa, sua história e a de seus habitantes consumiam a minha curiosidade.

Quem habitava ali? Como era por dentro? Que dramas se desenrolaram sob aquelas telhas francesas pintadas de um jeito tão exclusivo pelo musgo e pela matéria orgânica deixada pelas folhas ali depositadas e que só o vento e as tempestades de verão eram capazes de remover?

A casa destoava de tudo o que fora construído em volta nos últimos 40 anos ou mais. Devia haver outras, e certamente houve segundo relatos dos moradores mais antigos da vizinhança, entre eles meus pais e meus tios. Boa parte delas em centro de terreno, com suas características arquitetônicas próprias de cada época, mas aquela, a do mascarão, a minha preferida, sempre foi marcante por seu exotismo e diferença.

Com o passar das décadas, foram sendo demolidas para a construção de grandes prédios cheios de apartamentos, que em quase nada se diferenciavam uns dos outros, com suas aparências padronizadas, pensadas sob o ponto de vista da funcionalidade, do espaço, da vida moderna, mas sem nenhum detalhe ou capricho. Granito, pastilhas, vidro fumê… Era um sem fim de monotonia e de falta de estilo. Por isso, e devido à derrubada de suas congêneres, a velha casa mais se destacava e mais se tornava diferente.

Quase ninguém sabia sobre os moradores da casa. Apenas vagas informações sobre ter sido construída por um imigrante rico, um antigo morador diplomata, duas filhas sobreviventes a ele e mais nada. Fucei aqui e ali em busca de mais detalhes, mas nada consegui.

Num sábado, indo visitar meus pais, passando em frente a ela diminuí a velocidade para admirá-la e vi a placa: “Vende-se”. Foi como um golpe no meu coração. Em segundos pensei na possibilidade da demolição e do aproveitamento do terreno para algum prédio novo. Como o progresso doía… Certamente estaria sendo oferecida pelo preço de milhões. Não pela construção, mas pelo valor do terreno. Anotei o telefone com a ideia de investigar na primeira oportunidade.

Sonhei, numa das noites seguintes, que a comprava apenas para preservá-la, e entrando nela tudo era exatamente como minha imaginação criara ao longo dos anos. O piso, os banheiros, a cozinha e até a forma como a luz exterior chegava em cada cômodo. A garagem guardava dois carros antigos fabulosos, dos anos 50. Acordei com o sonho martelando minha cabeça, e por dias foi assim. Mas quais seriam as minhas chances frente à voracidade e os milhões das construtoras?

Passaram-se algumas semanas e, absorto na faina diária, nem cheguei a me lembrar do caso. Um dia reencontrei o telefone gravado no celular e resolvi ligar.

Fui atendido por um cavalheiro que, cheio de palavras difíceis e muito cortês, revelou-se um procurador da proprietária do imóvel, e que o valor do imóvel era de 5 milhões de reais. Dei uma cartada de mestre: disse-lhe que era representante de uma construtora do Paraná, interessada em se lançar no mercado imobiliário do Rio. Queria marcar um encontro, mas com a condição de que a proprietária do imóvel estivesse presente. O tal procurador respondeu que iria ver o que podia fazer e me retornaria.

Ao desligar o telefone tive vergonha da mentira que inventei e da condição maluca que impusera. Que história de construtora mais sem pé nem cabeça. Mas o pretexto para revelar o mistério da casa, conhecer sua dona e ter a sensação de participar desta história era mais forte do que meu senso de ridículo. Eu teria algum tempo para refinar a mentira da construtora, talvez inventando um nome para a empresa e um outro, falso, para mim mesmo, na esperança de que o homem me retornasse e, sem o saber, satisfizesse a minha inútil curiosidade.

Não demorou mais de 24h para o meu telefone tocar e eu reconhecer, pelo contato salvo, o procurador da dona da casa. Atendi fingindo estar ocupadíssimo, e ele me convidava para um encontro em seu escritório, no dia seguinte, às duas da tarde, com a proprietária, para eu apresentar minha proposta. Fiquei decepcionado, porque o que eu queria mesmo era ver a casa por dentro. Objetei o convite, dizendo que queria conhecer o imóvel em detalhes. Ele achou estranho, porque supunha que qualquer interesse manifestado pela compra seria para derrubar tudo e construir no lugar, pouco importando conhecê-lo fisicamente – bastaria conferir a documentação pertinente e as medidas reveladas pela escritura.

Mesmo assim, ele assentiu e, como a proprietária morava perto, mudou o lugar do encontro para a antiga e misteriosa casa. Cheguei lá às duas da tarde em ponto do dia seguinte. Notei que, ao contrário do costume, as janelas e portas da casa estavam abertas. Finalmente havia sinal de vida no lugar, ao contrário de como a vira em todas as vezes anteriores. Eram a proprietária e o seu procurador que já me esperavam no lugar. Toquei o botão da campainha elétrica que soou no interior do imóvel. Chegaram à varanda uma senhora pequena, de cabelos curtos e brancos, e um homem de paletó e gravata. Ela disse com uma voz decidida: “Entre, estávamos esperando o senhor.”

Gelei ao transpor o portão e caminhar pelo caminho de pedras que ligava a entrada aos degraus da varanda. Era ela, em pessoa, a dona daquela casa misteriosa. De onde estava já conseguia visualizar seu interior, uma grande sala da qual saía um corredor, talvez para seus cômodos térreos. Apresentei-me com um nome inventado, representante de uma empresa inventada, do Paraná. E ela respondeu: “Sou Lucília Alves, este é meu advogado, Dr. Benjó. Vamos entrando”.

Fiquei entusiasmado ao ver. Quase toda a mobília de época ainda se conservava dentro da casa, e parecia, pelos diferentes estilos, que pertenciam a períodos distintos. Coisas que deviam ter acompanhado aquela família durante gerações. Vi todos os cômodos térreos, inclusive o banheiro em art déco e uma cozinha tão grande que podia morar apenas nela. O que mais me impressionara: a intocada biblioteca de um diplomata, onde era também seu gabinete de trabalho, com a parede ornada de vários certificados e honrarias exibidas em molduras.

Uma espetacular escada de jacarandá volteava pelo salão e levava ao segundo andar onde estavam 4 quartos e mais um banheiro, tudo rigorosamente parado no tempo. A garagem, já vazia há décadas, não abrigava nenhum automóvel. Quis saber detalhes, quis que dona Lucília me contasse histórias e, como eu sabia fingir, convenci meus interlocutores. Assim fiquei deleitado e muitos mistérios – mistérios para mim – iam sendo revelados naquela conversa.

A casa fora dos pais de dona Lucília, realmente comprada de um rico imigrante lusíada que a construíra nos anos de 1920, e o pai dela era, de fato, diplomata.

Ela tinha uma irmã, pouco mais nova, com quem morava desde que se aposentara de bem-sucedida carreira como professora de artes numa universidade federal. A casa era integralmente sua, parte que lhe coubera na herança paterna.

Aproveitara bastante a aposentadoria, viajara para vários lugares do mundo e, solteira e sem filhos, resolvera pôr a casa à venda para ajudar seus sobrinhos e sobrinhos-netos, dos quais era muito próxima, reservando parte dos recursos para continuar a fazer o que mais gostava: viajar com sua irmã e algumas outras parentes. Disse-me que havia sido muito feliz naquela casa, mas que ela era grande, custosa, difícil de manter e precisava de intervenções e reparos para os quais não teria qualquer interesse ou paciência de promover.

Era apenas uma casa velha, sem qualquer significado maior no coração de sua dona, a não ser pelos recursos que podia proporcionar a sua venda, feita sem qualquer nostalgia ou remorso, reforçando-se a “documentação cristalina”.

No interior da casa eu havia encontrado, além dos dois que me receberam, uma terceira pessoa. Era dona Alba, irmã de dona Lucília, que a estava acompanhando. No passeio pelos cômodos, chamou-me a atenção uma foto, mostrando as duas senhoras, ainda moças, no convés de um navio. Uma delas, Lucília, jovem e bela, ostentava na cabeça um chapéu com uma pena extravagante. “Era um amor de chapéu”, disse-me sua dona. “Ele ainda está aqui em algum lugar.”

Na hora de tratar de negócios eu quase não tinha o que inventar, tamanho meu choque com todas as novidades de que ficara sabendo. Especialmente com a frieza e a quase indiferença com que dona Lucília tratava a velha casa, que para mim era um símbolo da vida, da minha curiosidade e a síntese de todos os mistérios insondáveis que carregara por anos.

Inventei uma proposta de três milhões e meio, apenas para terminar aquele encontro que acabou se tornando constrangedor para mim, já com o peso na consciência de haver feito aquelas boas pessoas perderem seu tempo e abusando da confiança delas.

Retirei-me, agradecendo a atenção. E disse que esperava notícias. Poucos minutos depois, bloqueei o contato de Dr. Benjó no celular, e nem sei se ele tentou ou não me telefonar para falar da proposta que, supostamente, eu trazia do Paraná, da construtora inventada.

Alguma empresa, no entanto, fez uma proposta que foi levada a sério e foi concluída porque não tardou um mês para a velha casa ter seu encontro com inclementes picaretas e escavadeiras. Ela foi toda derrubada em poucas horas, e, segundo relatos de um vizinho meu amigo, antes todos os móveis haviam sido retirados do interior e provavelmente hoje estão espalhados pelos antiquários da cidade, em busca de interessados.

O primeiro elemento da casa a ser demolido foi a torre que dividia os dois volumes da fachada. A escavadeira mirou sua pá certeira no pobre mascarão, que se desprendeu, desfigurado, da alvenaria onde estava preso havia mais de noventa anos. Depois, tudo pó. Terreno vazio, cercado, já estão construindo lá o edifício de oito andares e cobertura duplex que está sendo anunciado pelos cartazes na vizinhança.

A queda daquela casa simbolizou o fim de uma fase de mim mesmo. Não tinha qualquer vínculo mais íntimo com o local, mesmo assim me sentia pertencente e ligado àquelas árvores, àquele jardim, à sereia que um dia verteu água a qual admiravam as aves pernaltas paralisadas em volta, àquelas linhas arquitetônicas ecléticas e até meio exóticas. Mas tudo hoje é passado e ausência. Até o chapéu de Lucília. Um amor de chapéu.

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