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Marco civilizatório

‘Velhinhos’ só vivem da metáfora de gases venosos

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Após alguns bons pares de anos de engodo político e governamental, finalmente deixamos de ser o país do futuro. Hoje, depois de quase cinco décadas do milagre econômico ditatorial, minha geração atingiu o marco civilizatório da terceira idade. Conforme o Censo 2022, a população brasileira está 57% mais envelhecida. Sou daqueles que já está na segunda fase da vida, mas não me acho velho. Pelo contrário. Sou um jovem que aprendeu com o tempo a não se preocupar com a longevidade. Quando a noite cai e lá se vai mais um dia vivido, respiro, suspiro e digo: Estou no lucro. Na prática, como não estou em condição de dar maus exemplos, decidi que a fase é dar bons conselhos.

Não sei se conseguirei, porque, desde a infância, minha velhice está em uma caixa de bombons. Pertenço a um passado recente, quando virgindade ainda era documento registrado em cartório. Ou seja, apesar de lamentar a tirania que me proíbe os prazeres da juventude, não consigo raciocinar sobre o etarismo, muito menos a respeito da finitude. Que ela venha sem pressa e, quem sabe, quando eu deixar de ter ressentimentos pela ideia de ficar velho. Embora tenha vivido com louvor o glamour da vida em tecnicolor, vejo hoje com certo pavor a vida que me é oferecida em preto e branco. Sei que tenho em abundância o que a mocidade mais deseja: a prudência de saber envelhecer.

Não tenho pacto com a solidão. Também não penso no envelhecimento de minhas emoções. Por isso, não me sinto um náufrago. Se não pratico o esporte do sexo como praticava, pelo menos não me abstive até agora. Salvo nos meses de fevereiro, dias 15 e 30 de cada mês lá estou furando o cartão de ponto no parquinho de diversão. Tenho pena dos vizinhos, pois os gritos de dor selvagem em substituição aos sussurros do prazer já assustaram até os bombeiros chamados para conter os urros do encontro do trem fantasma com a mulher barbada. Me deixaram em paz depois de, com muito pesar, eu mostrar aos soldados do fogo que a brasa não tem mais fogo, tampouco faísca.

Com algum sacrifício, as oito em uma hora da juventude se transformaram em uma em oito horas na velhice. E daí. É o ciclo natural da vida. Envelheci com a tranquilidade de um jabuti, que anda pouco para não perder de vista a jabutia. Como não uso óculos, busco, mas não encontro mais a seriedade. Aliás, acho que nunca nos demos bem. Otimista por convicção e não por diletantismo, sou pragmático e objetivo em tudo que faço e digo. Nem mesmo quando escrevo costumo ficar arrodeando em busca de reunir o tico e o teco. Se não sei, digo que não sei e pronto. Meu pragmatismo é de tal modo singular que, seguindo os ensinamentos do ator Paulo César Pereio, caso um dia a vida me vire as costas, passo a mão na bunda dela.

É claro que tenho pouco juízo, mas só faria isso de forma metafórica, como imaginei metaforicamente no dia em que pensei abrir uma casa de saliência para, numa situação de falência, fazer uso do estoque. Deus me livre de tal pensamento. Não tenho e jamais terei essa competência. O que tenho são aqueles pequenos vermes inescrupulosos chamados calorias, os quais se escondem em meu guarda-roupa e, à noite, costuram e apertam minhas roupas. Vivi a plenitude da vida. Mesmo pleno, até hoje não entendi algumas diferenças entre machos e fêmeas. Por exemplo, quando uma mulher fica grávida é comum todos alisarem sua barriga e parabenizarem-na pelo futuro rebento. A estranheza é pelo fato de nunca ter visto alguém alisar o Zé Bigorna e dizer: “Bom trabalho”.

Nem mesmo o urologista (o médico mais procurado pelos mais velhos) faz isso. Pelo contrário. Eles olham o bilau alheio com desprezo, pegam-no com nojo, mas cobram como se o tivessem batizado novamente. Nada muito estranho para quem se acostumou com as peripécias dos médicos durante o check up anual. Parecem os mecânicos de automóveis com nossas máquinas obsoletas. Na última revisão de 60 mil km, fui informado que não tenho defeito de fábrica. Os problemas são os naturais do desgaste. O motor, a homocinética, as velas e os filtros estão limpos. O cano de descarga tem várias folgas, daí o excesso de gases venosos e poluentes. O carburador funciona com apenas uma boca, as cassuletas batem com dificuldade, mas ainda aguentam o tranco. Quase carecas, os pneus precisam de calibragem. O problema é com a alavanca do câmbio. Bamba e sem engatar sequer a primeira, só pega bem quando eu encaixo na banguela, mesmo assim no escuro e com o injetor ligado na tomada 220 e operando como fio terra.

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