Pesadelo anunciado
Argentinos empossam Milei esperando um milagre
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emApós décadas sob o duvidoso jugo do peronismo, os quase 47 milhões de argentinos amanheceram o domingo, 10, com nova cara. A ansiedade, o vanguardismo fajuto e a parrilha sem gordura deram lugar à incerteza, ao improvável e à tara pelos holofotes. Em síntese, distante anos luz de uma passado de glória, a Argentina, de olhos vendados, mergulha de cabeça em um futuro desafiador e que, pelo volume de problemas, não permite sequer uma rápida passagem pelo presente. Empossado presidente, Javier Milei tem de começar a dar respostas imediatas ao povo que o elegeu contra a casta privilegiada que comandou o país por longos anos. Para El Loco, o tempo urge.
Para seus eleitores ávidos por mudanças, é urgente a redução da inflação e dos preços, o combate aos índices de pobreza (40%), a recuperação econômica da Argentina e a apresentação de propostas que acenem à população com igualdade, justiça e liberdade. Não será tarefa fácil para um mandatário com minoria no Congresso Nacional e que não dispõe da simpatia de pelo menos metade dos nacionais recuperar para a Argentina o perfil de potência mundial. É um desafio muito maior do que a expectativa, a preocupação e responsabilidade repassada ao descabelado Javier Milei por los hermanos que há anos esperam por um milagre.
Na caótica situação de lutar contra o bicho ou deixar que o bicho os engula, os argentinos vivem em uma corda bamba e toda remendada. Apostar na decantada honestidade, inteligência e passionalidade do presidente empossado é quase uma obrigação para aqueles que, cansados de retóricas tradicionais e sem inspiração, sonham com as reformas capazes de reduzir o buraco econômico em que a Argentina se enfiou desde o segundo terço do século passado. Pela necessidade de resultados e pelas dificuldades que certamente terá com as cobranças, fecho com a maioria dos analistas argentinos, para os quais, ante a precária situação econômica do país, Milei terá “uma lua de mel de apenas 100 horas com o povo”.
O fato é que, supostamente despertando de um sonho dourado sem brilho, os vizinhos do Prata adentram por um anunciado pesadelo. Cercado por dúvidas, o problema de El Loco começou – e pode terminar – com a escolha de sua equipe. Para quem jurou acabar com a corrupção e os vícios de poder, é, no mínimo, interessante permitir que o ex-presidente populista Maurício Macri retome a força e o protagonismo indireto justamente ao lado de um governante que se apresenta como libertário. Também ex-mandatário do Boca Juniors, Macri deixou o poder com uma dívida de US$ 50 bilhões com o FMI e uma inflação anual de 47.6%. Atualmente, os argentinos convivem com uma hiperinflação de 140%.
Por essas razões, apesar do discurso solo e raivoso contra antigos políticos e parceiros indispensáveis, Milei sabe que não poderá prescindir de um e nem de outro. Sem os negócios com o Brasil e com a China, a Argentina sucumbe. Sem o apoio de velhos sanguessugas da política local, entre eles Maurício Macri (o nosso Fernando Collor), ele não governará. Portanto, a agressiva retórica de dentista de periferia terá de ser suavizada, sob pena de Javier se enforcar em sua própria corda. Os brasileiros sabem muito bem o que quero dizer. Sabem tanto que, em 2026, dificilmente repetirão votos no conservadorismo barato e inexpressivo do grupo conhecido por bolsonaristas.
Difícil imaginar uma situação diferente, mas, queira Deus, que nossos vizinhos não estejam entrando em uma fase que, aos trancos e barrancos e com um golpe fracassado, conseguimos ultrapassar com traumas restaurados à base de mercúrio cromo e esparadrapo. Com certeza seria muito pior caso o Milei daqui tivesse sido reeleito. Graças a todos os santos, não foi.
Embora existam poucas dúvidas de que o cenário de lá é diverso, a Argentina e Milei são problemas exclusivos dos argentinos. Tomara que los hermanos sejam menos ufanistas e percebam mais rapidamente que as margens da confiança acabam quando a água começa a invadir a nau desembestada. Como já disse, quem pariu Milei que o embale. Sob pressão e à custa de muitos panelaços, nós embalamos e jubilamos o nosso.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978