Poder disciplinador
STF cria onda contra rochedos e faz da imprensa meros mariscos
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emNa segunda década do século 21, quando parecia que a maioria do planeta tinha a maioridade democrática e consolidado o conceito de liberdade, notadamente o de imprensa, eis que o Supremo Tribunal Federal mais uma vez avança no sentido oposto. O mesmo STF, que fez cara feia e impediu corajosamente a implantação da ditadura bolsonarista, escancarou os dentes para a censura. E fez isso de forma duvidosamente ambígua, sem perceber que o sorriso de hoje pode ser o choro de amanhã. Os conservadores não morreram. Na espreita e escoltados pelo cabo e pelo soldado do deputado Eduardo Bolsonaro, a qualquer momento eles podem voltar com sangue nos olhos e munição capaz de não só vandalizar os Três Poderes.
Se isso ocorrer, o Supremo seria o primeiro a ser atacado. Espero sinceramente estar viajando na maionese. Há dias me associei a um texto publicado neste mesmo espaço defendendo a Corte da sanha de um grupo de senadores que, por puro oportunismo, quer controlar os votos e os mandatos de suas excelências de toga. Como a imperfeição no Brasil é uma utopia, hoje me dirijo ao STF com quatro pedras na mão. Há duas semanas, por 9 votos a 2, o pleno do Supremo aprovou uma tese prevendo a possibilidade de responsabilização civil de empresas jornalísticas que publicarem entrevistas que imputem crimes a terceiros, “quando houver indícios concretos de falsidade, difamação, calúnia e mentira”.
É claro que a decisão gerou reação de entidades que atuam em defesa da liberdade de imprensa. O fato é que, como na briga entre o rochedo e o mar, na qual o marisco é quem se lasca, no Brasil a imprensa é culpada de tudo que acontece de ruim. Das mazelas do governo ao fracasso do golpismo, passando pelo desgoverno anterior, as coisas negativas são habitualmente creditadas na conta dos pobres e mal pagos jornalistas. Sempre eles. Os tubarões da comunicação, muitos deles “representando” o povo nos governos estaduais e municipais, no Congresso, assembleias legislativas e câmaras municipais, são inocentados antes mesmo da audiência de custódia (?) ou se valem da imunidade para justificar a impunidade.
Plausíveis do ponto de vista da honra, os argumentos falham na praticidade da profissão. Também defendo punição àqueles que imputem de forma falsa crimes a terceiros. No entanto, como um jornal ou jornalista saberá se um entrevistado está mentindo ao conceder uma entrevista? Repórteres, redatores e editores trabalham com base em informações e/ou documentos. E se eles forem falsificados? Vale lembrar que, além dos falsários diplomados em universidades internacionais, temos amadores que já enganaram o próprio Supremo. Célebre criador de factoides e de denúncias sem provas, o ex-deputado Roberto Jefferson quase derrubou o governo Lula na época do Mensalão. Todos embarcaram no palavreado rebuscado, sem nexo e bizarro do ora presidiário Bob Esponja.
Vale lembrar que se há problemas no jornalismo – e há-, um dos culpados é o próprio STF, que, em junho de 2009, por 8 votos a 1, decidiu que o diploma de jornalismo não seria mais obrigatório para o exercício da profissão. Ministro aposentado, Marco Aurélio foi o único a votar contrariamente. O resultado é que hoje qualquer um pode ser jornalista, inclusive reportando ou opinando sobre questões que incomodam sobremaneira suas excelências de toga. Os argumentos foram diversos, mas quase todos foram na linha de que os desvios de conduta e as notícias inverídicas independem da formação superior.
É verdade. No entanto, os profissionais diplomados normalmente têm vínculo empregatício, consequentemente respeito às fontes, ao leitor, à profissão e ao eventual dolo que possam causar aos informantes, entre eles ministros da Corte Suprema, alguns craques nos recados em off. Parece que o STF quer chamar para si o poder disciplinador do país. Invertendo a ordem da Oração de São Francisco, onde houver dúvida, chamem o STF e recebam a compreensão. A ideia é que, havendo suposta ofensa, o ofensor deve ser levado à forca sem dó e nem piedade. Com todas as vênias, mas a tese elaborada pelo ministro Alexandre de Moraes, vedada qualquer intenção diabólica, cheira a censura prévia, na medida em que claramente servirá para intimidar os profissionais. Um dia, talvez, suas excelências percebam quão nociva foi a decisão contra a liberdade de imprensa. Tomara que não haja uma nova tentativa de golpe depois de 2030. Noticiar mais uma invasão à sede do STF poderá ser considerada injúria e difamação contra Jair Bolsonaro.