Um rosto familiar
Após 30 anos, briga em escola revela verdades
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emAs primeiras palavras que ouvi daquele rosto familiar, apesar de não conseguir, naquele momento, saber de onde eu o conhecia, foram: “Você está bem?” Não me recordo se lhe dei uma resposta ou se voltei a desmaiar. Lembro-me apenas de acordar já nos braços do meu pai, levando-me para debaixo de uma mangueira, onde ficamos até que consegui me recuperar quase que por completo do soco que havia levado de um garoto na saída da escola. Tudo por conta de uma menina, que, naquele fatídico instante, descobri ser namorada do meu oponente.
– Pai, quem era aquele garoto?
– O que te bateu?
– Não. O outro!
– Outro? Que outro?
– Ele parecia com o senhor.
– Comigo? Não sei do que você tá falando.
Essa conversa foi deixada bem lá no fundo de uma gaveta da minha memória durante quase 30 anos, até que, na semana passada, voltou à tona. Não por causa daquela menina dos meus tempos de escola. Na verdade, nem me recordo do seu nome. A responsável foi outra garota, por quem me apaixonei há um tempo. É a Edivânia, minha esposa tão amada, que queria porque queria uma estante para colocar na sala.
Depois de rodar por toda a cidade à procura da tal estante, Edivânia me intimou a encontrar alguém que fizesse o tal móvel dos seus sonhos. Foi aí que acabei me esbarrando com aquele garoto que, por essas coincidências da vida, me fez a mesma pergunta, agora acompanhada de outra: “Você está bem? No que posso servi-lo?”
Por não sei quanto tempo, ficamos nos olhando. A princípio, creio que ele deve ter me achado um louco, até que nos apresentamos.
– Me chamo Ailton. Minha esposa quer uma estante.
– Prazer. Sou o Adailton. Qual o tipo de estante que ela deseja?
Entreguei para o homem um desenho que a minha mulher havia feito. Ele olhou com atenção e disse que o preço era tanto e o prazo de entrega era de cinco dias. Adiantei metade do pagamento e, antes de sair, tive um pequeno interlúdio com o Adailton.
– Obrigado.
– Agradeça depois que eu lhe entregar a estante.
– Não estou falando da estante.
– Não?
– Falo de quando você me ajudou depois de eu ter levado uma surra de um menino na escola.
Adailton me encarou e sorriu.
– Você ainda se lembra disso?
– Quem apanha nunca se esquece.
Adailton sorriu novamente.
– Fiz o que deveria ter feito.
– Por quê?
– Porque sou seu irmão.
– Meu o quê?
– Irmão. Somos irmãos.
Fiquei atônito por não sei quanto tempo. Parecia que aquele menino da escola havia me dado outro murro na fuça. Foi aí que o Adailton me contou toda a sua história, que envolvia meu pai, aliás, nosso pai. O meu irmão era fruto de um namoro entre sua mãe e nosso pai pouco antes dele conhecer a minha mãe.
Voltei para casa pensando naquela revelação. Telefonei para meu pai, que confirmou tudinho. Minha mãe sabia dessa história também. No entanto, não sei por que nunca me contaram.
Não adianta buscar culpados nessa altura da vida. Mas é difícil não pensar nas brincadeiras que não tivemos juntos, nos momentos de dúvidas na adolescência, nos almoços de domingo. Tudo é muito novo para mim, mas estou adorando ter um irmão mais velho, que, apesar de ter a minha cara, ainda assim sou o mais bonito.